domingo, 22 de março de 2015

Religião e Estado | Rui Barbosa


Veda a constituição, de todo, ali, como aqui, aos poderes federais qualquer aliança entre a igreja, e o estado: circunvala entre êste e aquela a separação mais completa. Mas os outros mais solenes do govêrno invocam o nome de Deus. Os generais em serviço de guerra imploram, diante das tropas, “a bondade tutelar dessa Providência que encaminha indivíduos e nações”.  A voz do presidente se reúne todos os anos, em dia certo, à nação inteira, a render graças ao Eterno. As sessões do Congresso, nas suas duas câmaras, se abrem e encerram diàriamente com as preces de um sacerdote. O senado tem o seu capelão; tem o seu a câmara dos representantes, um e outro eleitos por essas duas assembleias. Têm-nos, ainda, nomeados pelo presidente, as prisões, os hospícios de alienados, as escolas militares, o exército e a marinha, até vinte e quatro para esta, e para aquêle trinta e quatro. A propriedade eclesiástica não se tributa, no distrito de Colúmbia, nem nos estados. O juramento, nas instituições federais, como nas estaduais, se difere sôbre a escritura sagrada aos que não a rejeitam. As leis da União, como as dos Estados, consagram o descanso dominical. Numa das suas ordens do dia, Lincoln, como general em chefe do exército e da armada, no meio da terrível guerra civil em que periclitou a existência da União, impunha rigorosamente às suas fôrças a obediência a êsse preceito. “O general espera e confia”, dizia êle, “que cada oficial e cada praça buscarão viver como convém a soldados cristãos, afanados em lutar pelos mais caros direitos de sua terra”. Nas escolas neutras, enfim, o horário profano abre espaço ao ensino religioso, distribuído pelos ministros vários cultos nos próprios recintos escolares.

Ali não se divisa nesses fatos o mínimo agravo à secularidade legal das instituições. O que lá se não toleraria, nem a nossa constituição tolera, é estabelecer distinções legais entre confissões religiosas, sustentar a instrução ou o culto religioso à custa de impostos, obrigar à freqüência dos templos ou à assiduidade nos deveres da fé, criar embaraços de qualquer natureza ao exercício da religião, contrariar de algum modo a liberdade de consciência, a expressão das crenças ou a manifestação da incredulidade, nos limites do respeito às crenças e à liberdade alheias. Mas “nenhum princípio de direito constitucional se quebranta”, diz um grande jurisconsulto americano, o juiz Cooley, “quando se fixam dias de ação de graças e jejum, quando se nomeiam capelães para o exército e a marinha, quando se abrem as sessões legislativas, orando, ou lendo a Bíblia, quando se anima o ensino religioso, favorecendo com a imunidade tributária as causas consagradas ao culto”.

Vêde se anda fora da lógica o bom senso americano. O Estado exige de todos os cidadãos o imposto de sangue. Ninguém lho pode recusar, a título de que o seu credo o aborreça. Ao reclamo dêsse dever se alistam os exércitos e tripulam as esquadras. Mas êsses lidadores, que se aprestam a morrer, nos campos de batalha, ou nas vagas do oceano, pela segurança, pela integridade, pela honra nacional, não abjuraram, vestindo as armas, a consciência religiosa. Levam consigo a sua fé, o seu Deus, as suas esperanças na imortalidade, o culto de seu país. Êste lhes lembra todos os domingos o sacrifício cristão, lhes fala, nas tribulações, do confôrto espiritual, lhes evoca, em presença da morte, os compromissos eternos de sua alma. Quem lhes há de ministrar, nos quarteis, nas escolas militares, nos vasos de guerra, os ofícios divinos? Quem, no leito do hospital, ou entre o fogo dos combates, lhes dará os socorros do céu? Quem? Se a lei fechar os estabelecimentos militares aos ministros do Evangelho? Se as fôrças, que marcham para a guerra, não se acompanharem de ministros da religião? Se a rigidez das obrigações militares não conhecer os mandamentos supremos da vida cristã? Há de o soldado fiel pagar, do sôldo, ou da etapa, os seus capelães? Pode o soldado moribundo, na tenda, ou no campo, mandar por êles ao povoado? De onde acudirá o valimento apostolar ao marinheiro, que expira na solidão dos mares, ao conscrito que agoniza nas refregas de uma campanha entre as armas da pátria e as do inimigo? Se o marinheiro e o soldado têm direito à medicina do corpo, e ao estado incumbe o dever de lha suprir, como não terá o soldado, o marinheiro à cura da alma, e ao govêrno poderá ficar o arbítrio de não lha dar? A que título o civismo, vestindo-me a blusa, ou a farda, me seqüesta às relações religiosas, e, sôbre me exigir o sacrifício da vida, me impõe a morte do ateu?

Assim banir do quadro militar, em nome da liberdade, o elemento religioso, é estabelecer, debaixo dêsse nome, a mais odiosa das servidões, e pagar com a ingratidão suprema os serviços do marinheiro e do soldado. Os americanos abominariam essa falsa igualdade; porque homens realmente livres não se pagam de fórmulas mentidas, e acima de tudo execram a opressão, que se abrigue sob hipocrisias de especioso liberalismo. Não quiseram, pois, animalizar o homem de guerra. Viram, claramente, viram, que a multidão armada, sem o freio do respeito cristão, é como as feras domadas, que acabam fatalmente por devorar os domadores.

Estudem o desenvolvimento da criminalidade militar entre nós, e hão de verificar, tenho por certo, que delinqüencia adquiriu, nessa esfera, expansão notável e crescente, desde que se varreu dos quartéis a influência civilizadora do culto. Os nossos exércitos de mar e terra constituem, hoje, a êste respeito, pela mais errada inteligência das nossas liberdades constitucionais, uma excessão absurda entre os povos civilizados. Das coisas sérias, em nossa terra, por via de regra, não se cogita. Mas o soldado brasileiro há de sentir um dia que o estão desnaturando, e tomará nas próprias mãos, pacífica, mas resolutamente, a causa da sua reconciliação religiosa. Ou então, ai de nós! Quando o ateísmo de fuzil e baioneta se inflamar nas explosões da crueldade.

Nos Estados Unidos não se conhece êsse risco; porque o seu senso político, incapaz de tais eclipses, sempre lhes mostrou que a disciplina da terra não se mantém sem a disciplina do céu, e o seu senso liberal os convenceu de que brutalizar o uniforme no abandono da religião era conferir à incredulidade os privilégios recusados ao culto.

Aí está porque o constitucionalismo americano repele essa uniformidade atéia, cuja superstição professa a república no Brasil, e que não estava decerto nos intuitos dos seus fundadores. Desde 1876 que eu escrevia e pregava contra o consórcio da Igreja com o Estado; mas nunca o fiz em nome da irreligião: sempre, em nome da liberdade. Ora, liberdade e religião são sócias, não inimigas. Não há religião sem liberdade. Não há liberdade sem religião. “O despotismo é que passará sem a fé: a liberdade não passa”, dizia Tocqueville, edificado pelo espetáculo dos Estados Unidos. “A religião”, insistia, “é muito mais necessária nas repúblicas do que nas monarquias, e muito mais ainda nas repúblicas democráticas do que em tôdas as demais”. Como não houvera de perecer a sociedade, se, afroixando o laço político, não estreitasse o vínculo moral? E que será de um povo, senhor de si mesmo, se não for submisso a Deus? É a mesma impressão que o abalava, a êsse grande pensador político, ao estudar O Antigo Regime e a Revolução: “O povo, se quiser ser livre, há de ter convicções religiosas. Em não tendo fé, servirá”. Essas as idéias que nos propeliam, há dezoito anos, quando vimos o padroado imperial encarcerar os bispos. Assim como não admitíamos o Estado cativo à Igreja, não podíamos admitir a Igreja cativa ao Estado.

Foi sob êsse pensamento que adotamos a constituição de 1891. Tínhamos, então, os olhos fitos nos Estados Unidos; e o que os Estados Unidos nos mostravam, era a liberdade religiosa, não a liberdade materialista. Naquele país a incredulidade possui também o seu grupo, que advoga a tributação dos cultos, a supressão dos capelães, a abolição de todos os serviços religiosos custeados pelo Tesouro, a extinção do juramento, a substituição, nas leis, da moral cristã pela moral natural. Mas êsse programa, formulado ali há trinta anos, definha enquistado na seita que o concebeu. “Nós somos um povo cristão”, diz o juiz Kent, um dos patriarcas da jurisprudência americana “e a nossa moralidade política está profundamente enxertada no cristianismo”.

 Êsse fato precedeu à constituição, ali e aqui. Aqui, como ali, êsse fato subsiste sob a constituição. Ela o não podia destruir, porque, lá e cá era, nas duas nações, a grande realidade espiritual. Na república Norte Americana a superfície moral do país estava mais ou menos igualmente dividida entre uma variedade notável de confissões religiosas. No Brasil o catolicismo era a religião geral; o protestantismo, o deísmo, o positivismo, o ateísmo, exceções circunscritas. De modo que, enquanto nos Estados Unidos a igualdade religiosa constituía uma necessidade sentida, mais ou menos, no mesmo grau, por tôdas as comunhões, entre nós ela representava tão-sòmente aspirações da minoria. A liberdade de cultos veio satisfazer, em boa justiça, à condição opressiva dessas dissidências maltratadas pela exclusão oficial, mas não invertê-la contra a consciência da maioria. Se, nos Estados Unidos, avultava no maior relêvo “o fato de que o cristianismo era, e sempre foi, a religião popular” (são palavras de um magistrado americano), no Brasil êsse fato tinha vulto menos proeminente.

As constituições não se adotam para tiranizar, mas para escudar a consciência dos povos. “A nossa constituição”, diz um escritor americano, que tratou ex-professo o assunto, “a nossa constituição não criou a nação, nem a religião nacional. Achou-as preexistentes, e estabeleceu-se com o intuito de as proteger sob uma forma republicana de govêrno”. Ora, a condição de nós outros é idêntica, por êste lado, à dos Estados Unidos. Antes da república existia o Brasil, e o Brasil nasceu cristão, cresceu cristão, cristão continua a ser até hoje. Logo, se a república veio organizar o Brasil, e não esmagá-lo, a fórmula da liberdade constitucional, na república, necessàriamente há de ser uma fórmula cristã. As instituições de 1891 não se destinaram a matar o espírito religioso, mas a depurá-lo, emancipando a religião do jugo oficial. Como aos americanos, pois, nos assiste a nós o jus de considerar o princípio cristão como elemento essencial e fundamental do direito brasileiro. Nessa verdade se encerram tôdas as garantias da liberdade e tôdas as necessidades da fé.

Adotando êste regime, escolhemos surgidoiro, onde nos abrigássemos dos temporais, que, na Europa, com escândalo das almas e ruínas dos Estados, convulsam o mundo político e o mundo espiritual.

(Discurso pronunciado na Colação de Grau de Bacharel em Ciências e Letras— Colégio Anchieta, Friburgo, 1903. P. 18).