sábado, 14 de dezembro de 2019




«Para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente “natural”: está sempre carregada de um valor religioso. Isto é facilmente compreensível, pois o Cosmos é uma criação divina: saindo das mãos dos deuses, o Mundo fica impregnado de sacralidade. Não se trata somente de uma sacralidade comunicada pelos deuses, como é o caso, por exemplo, de um lugar ou um objeto consagrado por uma presença divina. Os deuses fizeram mais: manifestaram as diferentes modalidades do sagrado na própria estrutura do Mundo e dos fenômenos cósmicos.
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O mundo apresenta-se de tal maneira que, ao contemplá-lo, o homem religioso descobre os múltiplos modos do sagrado e, por conseguinte, do Ser. [...] Esta obra divina guarda sempre uma transparência, quer dizer, desvenda espontaneamente os múltiplos aspectos do sagrado. O Céu revela diretamente, “naturalmente”, a distância infinita, a transcendência do deus. A Terra também é “transparente”: mostra-se como mãe e nutridora universal. Os ritmos cósmicos manifestam a ordem, a harmonia, a permanência, a fecundidade. No conjunto, o Cosmos é ao mesmo tempo um organismo real, vivo e sagrado: revela as modalidades do Ser e da sacralidade. Ontofania e hierofania se unem.
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É preciso não esquecer que, para o homem religioso, o “sobrenatural” está indissoluvelmente ligado ao “natural”; que a Natureza sempre exprime algo que a transcende. Como já dissemos, uma pedra sagrada é venerada porque é sagrada e não porque é pedra; é a sacralidade manifestada pelo modo de ser da pedra que revela sua verdadeira essência. É por esta razão que não se pode falar de “naturismo” ou de “religião natural”, no sentido atribuído a estas palavras no século XIX; pois é a “sobrenatura” que se deixa manifestar ao homem religioso por meio dos aspectos “naturais” do Mundo.»

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Mircea Eliade, "O Sagrado e o Profano".

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Giovanni Reale - Natureza e Igualdade

Platão, diante de homens de cidades e condições diferentes, faz Hípias dizer o seguinte:

"Homens aqui presentes, eu vos considero consanguíneos, parentes e concidadãos por natureza, não por lei: de fato, o semelhante é por natureza parente do semelhante, enquanto a lei, que é tirana dos homens, amiúde força muitas coisas contra a natureza."

É claro que aqui não só são claramente distintos, mas radicalmente contrapostos, o plano da physis ou da natureza e o plano do nomos ou da lei. A natureza é apresentada como o que une os homens (o semelhante com o semelhante); a lei, ao invés, é apresentada como o que divide, forçando a natureza e, portanto, indo contra ela. A natureza é assim reconhecida como a única que pode constituir a verdadeira base do agir humano, enquanto a lei é denunciada como "tirana dos homens" e, portanto, é radicalmente desvalorizada, pelo menos quando e à medida que se opõe à natureza. Nasce assim a distinção entre um direito natural (lei de natureza) e um direito positivo (lei posta pelos homens); nasce a convicção de que, pelas razões acima vistas, só o primeiro é válido e eterno, enquanto o segundo é contingente e, no fundo, não-válido. E assim são lançadas as premissas que levarão a uma total dessacralização das leis humanas, que serão consideradas fruto de pura convenção e de arbítrio, e, portanto, frutos indignos do respeito do qual sempre estiveram circundadas.

Mas Hípias tira desta distinção mais consequências positivas que negativas: posto que a natureza dos homens é igual (pelo menos a natureza dos sábios aos quais ele se dirige no contexto do seu discurso), não têm sentido as distinções que dividem os cidadãos de uma cidade dos de outra, nem as distinções que no interior das cidades possam ulteriormente dividir os cidadãos: nascia assim um ideal cosmopolita e igualitário, que para a grecidade era não só novíssimo, mas revolucionário.

[...]

Comparadas às concepções de Hípias, são também mais radicais as concepções igualitárias e cosmopolitas do homem propostas por Antifonte.

"[...] não conhecemos nem veneramos os que vivem longe. Nisto, na verdade, tornamo-nos, como os bárbaros, uns com relação aos outros, dado que, por natureza, em tudo todos fomos igualmente feitos para ser quer bárbaros quer gregos."

O iluminismo sofístico dissolveu aqui não só os velhos preconceitos de casta da aristocracia e o tradicional fechamento da polis, mas também o mais radical preconceito, comum a todos os gregos, quanto à própria superioridade sobre os outros povos: qualquer cidade é igual à outra, qualquer classe social é igual à outra, qualquer povo é igual a outro, porque todo homem é por natureza igual ao outro.

Mas que é esta natureza comum a todos os homens? Em que consiste exatamente?

Os fragmentos que nos chegaram esclarecem que Antifonte entende por natureza a natureza sensível: natureza pela qual o bem é o útil e o prazer, o mal é o prejudicial e o doloroso, é a natureza que é a espontaneidade e liberdade instintiva. E à luz deste conceito de natureza, a lei é sempre vista — nem podia ser de outro modo — como não natural, porque constringe a sacrifícios e, portanto, a dores, refreia e põe obstáculos à espontaneidade.

[...]

Com base nessas premissas, a igualdade dos homens é vista exclusivamente como igualdade de estrutura e necessidade sensíveis:

"É possível ver que as coisas pertinentes ao âmbito da natureza são necessárias a todos os homens e por todos buscadas por meio das mesmas faculdades; e nessas mesmas coisas nenhum de nós se distingue nem como bárbaro nem como grego. Todos respiramos o ar com a boca e as narinas; rimos com alegria na alma ou choramos sofrendo, e com o ouvido recebemos os sons e graças à luz vemos com a visão, e com as mãos operamos e com os pés caminhamos [...]."

E isto é extremamente interessante: se restringimos a natureza humana à pura dimensão sensível, iludimo-nos em poder cancelar toda diversidade entre os homens, enquanto na realidade lançamos as premissas para fundar outros tipos de diversidade e outros tipos de distinções, sob certo aspecto ainda mais graves. E assim se explica que, do mesmo princípio da natureza-sensibilidade, alguns logo tenham podido deduzir conclusões opostas às que foram deduzidas por Antifonte: a natureza demonstra que existem homens mais fortes e homens mais fracos, e que, portanto, os homens são diferentes e a quem é mais forte é natural que domine sobre os fracos e lhes imponha a sua vontade. E explica-se também que, sobre esta base, a lei, entendida como contrária à natureza, devesse ser destituída de todo fundamento objetivo e, portanto, proclamada injustificável. Conclusões estas que, logo veremos, serão deduzidas pelos sofistas políticos.

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Trasímaco da Calcedônia chegou a afirmar que o "justo não é mais que a vantagem do mais forte"; do que ele deduziu, quase certamente, como nos diz Platão no primeiro livro da República, que a justiça é um bem para o poderoso e um mal para quem está submetido ao poderoso, que o homem justo tem sempre desvantagem e o injusto vantagem.

E o Cálicles do Górgias platônico (que, se não é um personagem real, ou uma máscara de um personagem real, é, contudo, pefeita expressão desta corrente) precisa:

"Parece-me que a própria natureza mostra ser justo que o melhor [= mais forte] tenha mais do que o pior [= mais fraco] e que o mais poderoso tenha mais do que o menos poderoso."

Com efeito, os animais mais fortes esmagam os mais fracos, os homens mais fortes fazem o mesmo com os mais fracos, e assim os Estados mais fortes com relação aos mais fracos; a lei é sempre contra a natureza (esta natureza) e foi feita pelos mais fracos para defender-se dos mais fortes e, neste sentido, é totalmente negativa. Por isso Cálicles chega a exaltar o homem mais forte, o super-homem, que infringe as leis e submete os mais fracos:

"Mas se nascesse um homem dotado de uma forte natureza, suficientemente forte, então arrancaria de si todos os freios da lei, os quebraria e se libertaria deles, pisaria as nossas instituições, os nossos encantamentos, os nossos sortilégios e as nossas leis, que são todas contra a natureza: e, rebelando-se assim, o nosso escravo resultaria o nosso senhor, e desse modo refulgiria o justo segundo a natureza."

E a vida "justa segundo a natureza" comportará também o favorecimento de todos os instintos, porque estes são segundo a natureza; comportará deixar-lhes livre curso, satisfazê-los depois de tê-los estimulado, conceder-lhes absolutamente tudo: e comportará fazer tudo isso em prejuízo dos mais fracos, e, antes, explorando para tais fins os mais fracos, justamente porque a natureza os fez diferentes e os pôs à disposição dos mais fortes.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Collin Cleary - Como Invocar os Deuses



Paremos e examinemos em quais momentos ─ em quais ocasiões temos o sentimento da realidade do que é diferente. Os melhores exemplos são quando as coisas não funcionam ou quando as coisas frustram nossas expectativas de uma maneira ou de outra. É assim que Heidegger aborda a questão. Nós entramos no nosso carro para começar um dia cheio, fazer negócios e compras ─ e nós descobrimos que ele não funciona. Minha experiência de tais situações é que há, de início, um sentimento de quase "irrealidade". Nós temos vontade de dizer (e dizemos frequentemente): "Eu não acredito nisso". E de repente o ser dessa concatenação de metal e de plástico nos confronta em toda sua artificialidade frustrante. Uma situação ainda pior ocorre quando o corpo fica doente, quando de repente ele não funciona como nós esperamos. O corpo parece, em seguida, ser um simples outro. Estas duas situações, e todas as outras parecidas, são ocasiões onde uma coisa que foi dada como certa parece de repente se afirmar sozinha. O que foi tomado como um simples instrumento, como uma extensão da vontade humana, torna-se um ser em si. O resultado é de frustração, de assombro, de fúria, e de algo como o respeito.

Mas, em termos religiosos, o que queremos não é sermos intimidados por isto ou aquilo, mas, ao invés, de finalmente encontrar o próprio mundo respeitável em sua estranheza. É necessário que o mundo "pare de funcionar", como um carro, para que nós o conheçamos? Com certeza, a resposta é que isso é impossível. O que acontece com muita frequência é que nós falhamos, e que o mundo nos aparece como algo que poderia ser perdido por nós para sempre. Eu tenho em mente situações onde os seres humanos têm um contato com a morte ou com a loucura, onde se encontram em face de sua própria mortalidade ou fragilidade. E eu já pensei frequentemente que certos homens se arriscam deliberadamente ─ precipitam deliberadamente um contato com a morte ─ simplesmente para poderem experimentar um sentimento renovado de respeito ou de maravilhamento em face da existência. Tais homens desenvolvem frequentemente um "sentimento" não somente da bizarra estranheza do mundo, mas também uma intuição "mística" de algo como a divina providência agindo por trás das cortinas.

Felizmente, não temos necessidade de saltar de um avião ou de subir uma montanha para alcançar a abertura do gênero que me interessa. Basta-nos colocar uma única questão e nela refletir: por que então há seres ao invés de nada? Aqui novamente, eu parto de Heidegger, mas para ir numa direção que Heidegger não explorou verdadeiramente.

Na Índia, existe um exercício de meditação muito simples frequentemente realizado pelos buscadores de sabedoria. Ele consiste em tomar não importa que objeto, banal que seja ─ pode ser uma pedra, ou uma ponta de cigarro ─, colocá-lo no solo, e traçar um círculo em volta dele na poeira. O efeito é de tomar um objeto que normalmente é tomado por óbvio, que é na vida a figura de um simples instrumento ou algo mal notado, e de nos fazer conscientes de seu ser. Digamos que seja uma ponta de cigarro. Quando nós traçamos um círculo em volta, ele se torna um objeto de meditação apropriado. No que nós meditamos não é sua natureza grosseira de ponta de cigarro, mas no fato de seu ser ─ o próprio fato de que existe. Essa é uma maneira de se habituar à maravilha do ser.

Colocar a questão "por que existem os seres ao invés do nada?", é traçar um círculo em torno do que é, como tal. É uma maneira pela qual, numa piscadela, o mundo inteiro no qual nos encontramos pode se tornar um objeto de meditação ─ e de respeito e de maravilhamento.

Quando encontramos o ser-em-si como um milagre, é natural (e inevitável) que nos perguntemos de onde ele vem. A versão infantil dessa questão é: "Quem o fez?". A versão mais sofisticada não se interroga sobre a existência física do universo considerado como uma totalidade, mas na fonte da abundância que se nos apresenta no universo. Nós nos maravilhamos com a inesgotável riqueza do universo, a infinita multiplicidade de tipos de coisas, e variações desses tipos, e a infinita complexidade de cada coisa, banal que seja. Nós nos maravilhamos com a contínua renovação dos seres ─ o contínuo curso de tipos que dão a luz a outros semelhantes, e a faculdade dos seres de se regenerar e de se curar. É natural se maravilhar com a fonte de tudo isso. É a "fonte do ser" que essa questão fundamental "por que há o ser ao invés do nada?" tem como tema.

Pense um momento na origem de uma fonte. Onde termina a fonte e onde sua origem começa (ou vice-versa)? Em sua origem, a fonte desaparece no solo. A origem é o buraco no solo? Certamente não. A origem é uma quantidade de água distinta da fonte? Novamente, certamente não. A fonte e sua origem se misturam. A origem da corrente é invisível. Mas nós entendemos que a fonte flui à partir dessa origem invisível. É exatamente assim que os Gregos conceberam a physis, como surgindo continuamente de uma origem última ─ arché, em grego. Essa compreensão é o sentido dos símbolos antigos tais como o chifre ou o caldeirão de abundância, e o Santo Graal. O arché é o fundamento infundado de toda abundância.

O problema fundamental com os seres humanos é o que os fazem querer ser eles mesmos o arché, a fonte de todas as coisas. Todas as nossas tentativas de compreender algo que seja, implicam em apreender como o ser da coisa segue de certos princípios que nós descobrimos. Nossas tentativas de compreender são tentativas de compreender de baixo. Nós nos esforçamos, de fato, para remover as bases de um objeto e de transformar o fundamento com o fim de ver como o ser do objeto decorre de nossas idéias. Quando o cientista, por exemplo, compreende os fenômenos, ele sublinha que os fenômenos decorrem dos princípios que ele estabelece. Mas quando voltamos nosso espírito ao arché último ─ do qual nós mesmos viemos ─, a despeito de todas as nossas afirmações de ter conquistado a natureza, o ser se manifesta como um dado misterioso e miraculoso. O arché é o fundo no qual a figura do ser-em-si se manifesta.

Entretanto, como indica o exemplo do círculo em torno da ponta de cigarro, podemos nos maravilhar com um único ser, assim como com o ser-em-si. E quando nos tornamos, com essa atitude de maravilhamento, aos fenômenos individuais da existência, uma outra questão fundamental surge. Nós poderíamos nos perguntar sobre uma coisa qualquer, por que essa coisa particular deve ser e é da maneira que é? Tomemos o fenômeno do sexo. Quando o espírito tenta pensar no sexo de uma maneira desapaixonada, ele acaba parecendo uma atividade bastante absurda e grotesca. Por que isso deve ser tão fascinante? Por que isso deveria absorver tanto do nosso tempo e ser tão importante para nós? No entanto, é. E quanto mais tentamos pensá-lo dessa maneira, mais tememos acabar confundindo tudo! O resultado é que, intimidados pela pura e inexplicável realidade do sexo, nós continuamos a nos maravilhar e a procurá-lo como antes. De fato, talvez este seja o único domínio, na vida de muitas pessoas, onde o milagre ainda acontece.

Mas todo o resto pode ser abordado com esta atitude de admiração. Um belo animal é também um objeto de admiração. Por que essa coisa particular deve ser, e é da maneira que é? O fato do vento, e da chuva, do sol e das estrelas, tudo isso pode causar admiração, e suscitar esse questionamento. E não há necessidade de que seja uma entidade física ou perceptível: pode ser o fato do nascimento, ou da morte, ou dos ciclos naturais, etc.

Agora, quando colocamos essa questão, pode parecer que perguntamos por um tipo de explicação oficial e científica, mas esse não é o caso. Nenhum curso na seleção natural poderá suprimir minha admiração diante do ser do meu gato ─ meu maravilhamento que uma tal coisa seja, e seja da maneira que é. Eu não tenho nenhuma querela com a explicação científica. Mas a explicação científica não pode suprimir essa admiração última e metafísica diante da pura existência das coisas. Eu estou perfeitamente pronto para aceitar a explicação dos cientistas da maneira em que os gatos apareceram ─ mas eu ainda olho para o meu gato e digo: "Não é incrível viver em um mundo onde coisas tão maravilhosas existem?"

Minha tese é esta: nossa admiração diante do ser das coisas particulares é a intuição de um deus, ou de um ser divino.

Estou dizendo que quando eu olho para o meu gato e conheço esse sentimento de admiração eu tenho a intuição de que meu gato é um deus? Sim e não. O maravilhamento que eu conheço vem de que coisas como essa podem simplesmente existir. Eu posso muito bem ter essa experiência contemplando o sol, a chuva, o oceano, as montanhas, etc. Minha admiração diante do ser dessas coisas é precisamente uma experiência de sua divindade. Assim existem os deuses do sol, do vento, da chuva, do oceano, das montanhas, e também dos gatos (os Egípcios compreenderam isso muito bem). Em verdade, todas as coisas irradiam da divindade; todas as coisas são Deus. E não há contradição entre essa afirmação e a afirmação de que há deuses. Essas são simplesmente duas maneiras diferentes de olhar para a mesma coisa. Na medida em que a divindade dos gatos irradiam através do meu gato, ele é o deus dos gatos.

Há um outro aspecto nessa experiência. Quando encontramos as coisas em seu ser, e nos admiramos que tais coisas possam existir, nossa percepção do tempo e do espaço muda. Quando uma coisa é vista com admiração, no sentido que eu descrevi, nós sabemos simultaneamente que seu ser se estende além do presente temporal. O objeto está, portanto, diante de nós, no presente, mas simultaneamente temos a intuição de um aspecto de eternidade na coisa. Quando me admiro que coisas como o meu gato possam simplesmente existir, do que eu me admiro é num sentido o "fato da existência dos gatos" no mundo. Como Alan Watts provavelmente disse, nós nos maravilhamos diante do fato de que há produção de gatos, de cães, de pessoas, de flores e de frutos neste mundo. É o aspecto da divindade que irradia através da coisa, vista de uma certa maneira.

Poderíamos pensar nos deuses como "regiões" do ser. Há tantos deuses quanto existem regiões do ser. Nossa consciência das regiões do ser não vem pela análise filosófica ou a construção de sistemas especulativos. Ela vem pela experiência e intuição. Há tantas regiões quanto existem experiências de admiração diante do fato que "coisas como X" possam existir. E existem regiões no interior de regiões. É assim que com um supremo bom senso os Indianos deixam as coisas vagas no que concerne ao número de seus deuses. Os textos hindus diferem. Alguns dizem que há 330 000 000 deuses. Um número tão grande não se destina a ser uma conta exata. Ele se destina a sugerir, de fato, a infinidade dos deuses, uma infinidade fundada no fato de que existem infinitas experiência possíveis de maravilhamento diante das coisas. Exatamente da mesma maneira, os anciãos autores chineses falam das "dez mil coisas", não para dar um número preciso, mas para sugerir a incompreensível imensidão da existência.

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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Edward Feser - Deus Ex-Machina?

[...] o mecanicismo é um erro metafísico particularmente pernicioso. De fato, é do ponto de vista Aristotélico-Tomista o principal erro do pensamento moderno, do qual todas as outras patologias morais e filosóficas do mundo moderno derivam. Eu escrevi numa postagem passada de que é no mecanicismo que a tendência filosófica moderna ao reducionismo está enraizada. E eu argumento extensamente em "The Last Superstition" — especialmente no capítulo 5 — de que é também no mecanicismo que nós encontramos as raízes dos tais problemas filosóficos "tradicionais", como o problema da mente-corpo, o problema da identidade pessoal, o problema da indução, o problema de dar fundamento racional à moralidade, o problema do ceticismo epistemológico, e o problema do livre-arbítrio. (Pelo menos os três últimos problemas precedem a revolução mecanicista moderna, mas se tornaram particularmente intratáveis por ela.) A moralidade e até mesmo a ciência se tornaram ininteligíveis quando se tenta interpretá-las num contexto mecanicista. Como W.T. Stace escreveu uma vez, o abandono moderno de causas finais foi "a maior revolução na história humana, de longe superando em importância quaisquer revoluções políticas das quais o trovão reverberou pelo mundo", e em sua concepção do mundo natural como inerentemente "sem propósito, sem sentido, sem significado "prepara "a ruína de princípios morais e de todos os valores" ("Man Against Darkness", The Atlantic, (Setembro, 1948)). Stace — quem escrevia de uma perspectiva empirista ao invés de Aristotélico-Tomista — também reconheceu que essa revolução foi puramente filosófica, e não fundada em qualquer descoberta empírica ou científica. E como eu escrevi numa outra postagem passada, outros pensadores fora da órbita Aristotélico-Tomista (tais como Alfred North Whitehead e E. A. Burtt) também reconheceram os fundamentos filosóficos ao invés de científicos da revolução mecanicista, e notaram suas implicações filosoficamente problemáticas para a ciência em cujo nome os mecanicistas defenderam a sua revolução.

Mais para o ponto presente, contudo, é que o mecanicismo é simplesmente incompatível com o teísmo clássico — a concepção de Deus historicamente central tanto para a ortodoxia Cristã quanto para a teologia filosófica clássica, defendida por tais pensadores como Atanásio, Agostinho, Anselmo, Aquino, e (fora do contexto cristão) por Maimonides, Avicenna, e outros. No núcleo do teísmo clássico está a doutrina da simplicidade divina de acordo com que não há em Deus nenhuma composição, qualquer que seja. Ele não é "feito de" partes nem físicas nem metafísicas, da maneira que todo o resto das coisas que existem são — de forma e matéria, digamos, ou ato e potência, ou essência e existência. Em vez disso, Ele simplesmente é "puro ato" e existência subsistente. Ele não é "um ser" ao lado de outros seres, mas antes o próprio Ser. Também é central ao teísmo clássico a noção de que o mundo das coisas criadas, contingentes, não poderia continuar na existência mesmo por um instante caso Deus não o preservasse continuamente no ser. Essas doutrinas estão ligadas. É por causa de que tudo na ordem criada é composto que ela deve ser "mantida junta" no ser por algo fora dela; e é porque só Deus é simples e não-composto que só Ele pode ser aquilo que preserva tudo o mais no ser dessa maneira.

Agora, para o Aristotélico-Tomista, a distinção aristotélica entre ato e potência é crucial para entender a simplicidade divina, a conservação divina, e a conexão entre elas. A essência de uma coisa contingente (e assim a própria coisa contingente) é meramente potencial ou "em potência" até que aquela essência seja atualizada através do ser, combinada a um "ato de existência". A matéria é meramente potencial a menos que combinada e atualizada pela forma. Em geral, a potência não pode existir por conta própria, mas só quando é unida à atualidade. Mas só aquilo que é Puro Ato pode possivelmente por um fim em qualquer regressão de "atualizadores", precisamente porque é simples e não tem partes das quais a conjunção precisa ser atualizada. Assim o mundo de coisas compostas não poderia existir por nenhum instante a menos que aquilo que é puramente atual e absolutamente simples estivesse continuamente sustentando esse mundo.

Como eu escrevi anteriormente, a distinção de ato/potência e a noção de causalidade final estão intimamente relacionados: uma potência ou potencial é uma potência para algum ato ou atualidade, em direção a qual esse potencial aponta como um fim; e ter um fim é estar em potência em direção a algo. Não é acidental, então, que quando os modernos abandonaram a causalidade final pelo mecanicismo, a distinção de ato/potência foi abandonada também. E também não é acidental que o mundo tenha se tornado algo parecido a uma "máquina", não somente no sentido de um tipo de artefato remendado de partes sem tendência inerente para funcionar em direção a um fim comum , mas também no sentido de ser o tipo de coisa que pode, em princípio, continuar a existir mesmo na ausência do "maquinista". A doutrina da conservação divina deu lugar ao deísmo, e o deísmo deu lugar ao ateísmo.

Tenha em mente que para Aristóteles e a tradição Escolástica influenciada por ele, a distinção de ato/potência é crucial para evitar os extremos representados por Parmênides e Heráclito, em ambos os quais a ciência se torna impossível. Para Parmênides, a mudança é ilusão, e assim também o mundo de nossa experiência, onde qualquer ciência empírica precisaria basear suas descobertas. Para Heráclito, a permanência é a ilusão, e não há nada que possa unir a liberdade da experiência em um sistema ordenadamente científico. Aristóteles argumentou, contra Parmênides, que a mudança é possível porque entre o ser e o não-ser — as duas únicas categorias reconhecidas por Parmênides — existe a potência ou potencialidade. Mas (contra Heráclito) a permanência é também possível, porque dentro do fluxo da experiência enfatizada por Heráclito há formas imutáveis ou essências que a matéria deve assumir se é para ela ser atualizada de qualquer modo. É por causa dessas formas atualizantes serem universais, comuns à miríade de indivíduos que as instancia, e porque elas persistem mesmo se as coisas individuais irem e virem, que a ciência é possível. Porque são as formas imutáveis e universais, ou a natureza das coisas, que formam a matéria de discussão adequada da investigação científica.

Agora, os antigos atomistas procuraram evitar os extremos Parmenideanos e Heracliteanos de outra maneira. Para eles, o mundo da nossa experiência é de fato o fluxo que Heráclito disse que era, mas só porque subjacente a ele está o mundo dos elementos inobserváveis, imutáveis e indestrutíveis (e nesse sentido, "Parmenidiano") —os átomos, interagindo de acordo com padrões de causalidade eficiente e desprovidos de qualquer teleologia inerente ou causalidade final.  Mas não há nada além disso a ser dito na explicação dos próprios átomos. Limitados como são os vários átomos às suas formas particulares, tamanhos, posições no espaço, etc., eles não podem inteligivelmente ser tomados como puramente atuais, simples, ou de qualquer outra maneira comparável (e tão "auto-explicativos" como) ao Deus do teísmo clássico. Nem, desprovidos como são de causalidade final, eles necessarimente apontam além de si mesmos para qualquer coisa. Conformemente, eles constituem o conhecido "fato bruto". Ao invés de verdadeiramente evitar os extremos Parmenidianos e Heracliteanos, os atomistas essencialmente abraçaram ambos de uma vez: como Parmênides, eles sustentaram que o mundo da nossa experiência é ilusório; na realidade não há "nada além" dos atómos. E como Heráclito, eles tornam o mundo, em última análise, ininteligível.

Mas os atomistas foram os mecanicistas originais, e seus sucessores modernos simplesmente repetem seus erros. Como eu escrevi em várias postagens antigas e argumentei extensivamente em "The Last Superstition" e "Aquinas", rejeitar as causas imanentes formais e finais é tornar a causalidade eficiente ininteligível também. Porque se nada de sua natureza "aponta além de si" para qualquer outra coisa, então causas e efeitos se tornam "soltos e separados"; qualquer efeito ou nenhum pode, em princípio, seguir de qualquer causa. Isso não só pavimenta o caminho para os paradoxos de Hume, mas mina a possibilidade de mostrar como o próprio fato da causalidade eficiente como tal — quer dizer, de potência sendo atualizada — pressupõe uma Causa Não-Causada sustentadora e puramente atual. A conexão metafisicamente necessária entre o mundo e Deus está quebrada; em princípio o mundo pode existir e operar tal como acontece à parte de Deus.

Ainda existem, é claro, questões sobre como os elementos da máquina mundial (quer pensemos nesses elementos como átomos Democriteanos ou em termos mais contemporâneos) vêm a formar estruturas mais ou menos complexas. Mas o peso das probabilidades vis-à-vis, dessa ou daquela estrutura poder ter acontecido por processos naturais conhecidos não pode nunca te levar a uma polegada mais perto do Deus do teísmo clássico, porque aquele Deus já foi descartado no momento em que foi concedido que a máquina pode pelo menos em princípio ter existido sem Ele.

Isso ainda permanece mesmo se o mecanicismo for adotado "só para fins de argumentação". Explicar o Deus do teísmo clássico numa base mecanicista mesmo a fim de argumentação é como dizer "Vamos conceder, só para fins de argumentação, que quem quer que tenha matado Nicole Brown Simpson e Ron Goldman não poderia ter sido um homem. Agora, deixe-lhe mostrar porque é provável, dado aquela suposição, que O. J. Simpson foi o assassino..." O procedimento é absurdo, porque a concessão inicial já eliminou a conclusão desejada da corrida.

Mas não se poderia argumentar que os próprios elementos devem ter vindo de Deus? Sim, mas não de uma maneira "mecânica". Porque se é afirmado desses elementos algo como uma composição de ato/potência, daí de fato se chega a Deus, mas (uma vez que tal composição acarreta a causalidade final) só porque se abandonou implicitamente o mecanicismo. Mas se alguém insiste em negar dos elementos qualquer tipo de causalidade final imanente, daí esse alguém estará assim implicitamente negando deles qualquer tipo de potência que precisa ser atualizada por algo fora deles. E nesse caso, os elementos não serão necessariamente sustentados no ser por Deus. Assim, independente ao que se apela a fim de explicá-los, nunca poderia ser o Deus do teísmo clássico, mas somente um substituto idólatra. Similarmente, o Deus do teísmo clássico é o Ser em Si, e nada poderia existir — quer dizer, ter ser — mesmo por um instante, mesmo em princípio, sem participar no Ser em Si (seja a "participação" entendida em termos neo-platônicos ou nos termos aristotelianizados da Quarta Via de Aquino). "Pesar as probabilidades" dos elementos de um universo mecânico poder ter eles mesmos uma causa, é assim, implicitamente, descartar o Deus do teísmo clássico como a causa que se defende, uma vez que se uma coisa participa do Ser em Si, isso não pode ser inteligivelmente tomado como uma questão de probabilidade, não mais do que tomar um teorema geométrico que segue de certos axiomas como uma questão de probabilidade.

Como Kant famosamente sustentou, o argumento "físico-teológico" ou o argumento do "design" para a existência de Deus, realmente não te leva a Deus, mas somente para um grande, porém finito, arquiteto cósmico — algo como o Ser Supremo, personagem de Ralph Richardson de "Time Bandits", como eu apontei numa postagem anterior. O mesmo é verdadeiro de qualquer argumento que prossiga, como Paley e seus sucessores fizeram, retratando Deus como um remendador que monta um universo mecânico. E o ponto, como eu não posso repetir muitas vezes, não é que esses argumentos não te levam de maneira alguma ao Deus do teísmo clássico, mas que eles te levam positivamente para longe do Deus do teísmo clássico. Você pode tirar um Deus da máquina, mas nunca "o" Deus.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Mário Ferreira dos Santos sobre a Teoria das Formas, de Platão

A MÍMESIS


Tenho uma caixa com um punhado de dez esferas de côres diferentes. Com elas posso formar um número imenso de combinações. Mas tôdas as vêzes que formo a combinação das côres verde-azul-encarnado, repito essa combinação, êsse arithmós. E se reunir três esferas das mesmas côres, mas outras, repetirei a mesma combinação.

Êsses números (arithmoi) não são mero nada. São possíveis que se actualizam existencialmente, cada vez que as coisas repetem a sua forma.

Pois bem, êste exemplo grosseiro permite-nos compreender as formas platônicas. Elas são únicas e sempre as mesmas, mas as coisas as copiam, as multiplicam, por imitação, por mímesis.

Mas êsses possíveis o são apenas para nós, para o plano cronotópico, pois são a verdadeira realidade, como a forma do triângulo é a verdadeira realidade dos triângulos, pois êste ou aquêle, que por acaso eu traço, serão passageiros, transeuntes, nunca, porém, a forma do triângulo (triangularidade) imperecível, eterna, perfeita, que êstes aqui, hic et nunc, apenas copiam, sem nunca alcançar a sua perfeição.

Os eide são ontologicamente extra-mentis. São realidades independentes de nossa mente, de nossas idéias no sentido psicológico; são ousíai kôristai. São subsistentes num modo de ser que não é cronotópico, pois se estivessem submetidas ao complexo tempo-espacial seriam destructíveis. Têm um modo de ser essencial e, por serem eternas, ultrapassam a todo modo de ser da temporalidade, que apenas tem um laço de participação com aquêles eide (metéxis)...

São as formas que sustentam e dão subsistência às coisas (parousia), pois elas dão unidade às aparências; arithmoi, que dão coerência aos entes cronotópicos; são, por isso, superiores, são paradeigmata (paradigmas).

Se são elas subsistentes de per si, ou no Ser Supremo, ou se, por sua vez, são da essência do ser, são temas dos quais não podemos tratar já, pois exigem outras análises.

[...]

Mas o que nos interessa para a gnoseologia é compreender como, para Platão, nosso espírito (nous) capta os esquemas dêsses arithmoi, dêsses eide.

Mas onde os capta? Como poderíamos conhecer um objecto se não o possuímos já de alguma maneira? Como se poderia dar a assimilatio do conhecimento sem o semelhante? Como posso conhecer sem que haja em mim algo que se assemelhe ao objecto?

É necessário alguma presença em mim do objecto. Que êle se imprima em mim através dos sentidos, compreende-se, mas como poderia imprimir-se em mim, sem que, de minha parte, se dê, emergentemente, uma aptidão para receber esta impressão?

Essa nossa capacidade de receber os objetos pelos sentidos não é tudo no conhecimento, pois sei que conheço e realizo, ao conhecer, uma actividade. Há algo latente em mim que é despertado.


AS FORMAS


Ao tratarmos de tal tema, assim escrevemos em “Filosofia da Crise”:

“A própria efectivação da forma, neste ou naquele ser, demonstra que ela era alguma coisa, e não o puro nada, antes do seu surgimento, nesta ou naquela coisa, pois, do contrário, não teria surgido no pleno exercício desta ou daquela actualidade. Por um vício natural do espírito humano, cujo esquema tem uma base muito mais profunda na nossa experiência vital, tendemos naturalmente a substancializar as coisas, para dar-lhes uma firmeza que as sustente. É natural que, num pensamento filosòficamente incipiente, procurassem alguns dar às formas uma substancialidade qualquer, mesmo de grau intensistamente, considerando-as, assim, como algo com uma estructura ôntica limitada. Daí a necessidade de colocá-las em um lugar, o que já revela debilidade filosófica.

Jamais o pensamento platônico se pode confundir com êsse pensamento vulgar. Considerar, como tal, a concepção de Platão, é um modo de caricaturizar a sua filosofia.

As formas não são para êle tòpicamente ubiquadas em qualquer lugar. Nem tampouco têm elas qualquer estructura sensível, isto é, captável pela intuição sensível. Eis por que não pertencem elas ao mundo da aparência, ao mundo do fenômeno, que é precisamente o que é captado pela intuição sensível, pelos sentidos. Se as formas têm uma consistência, não têm elas uma subsistência, com perseidade (de per se), isto é, actualizadas fora de suas causas, como é próprio de todo existente.

Aquêles que pitagorizam Platão, como é comum dizer-se, na verdade intrepretam genuinamente o pensamento do grande filósofo grego, pois as formas, não tendo uma existência de per si, pertencem, no entanto, ao mundo verdade, que é o mundo divino, do Ser Supremo, no qual elas subsistem. Todos os sêres, que formam uma unidade de qualquer espécie, quer de mera agregação, quer por accidente, quer substancialmente, têm uma forma, pela qual são o que são, e não outra coisa.

Esta forma, que é intrínseca aos sêres, é a sua lei de proporcionalidade intrínseca que lhes dá a especificidade. Quando Tomás de Aquino diz que a forma, enquanto ela mesma não é pròpriamente um ente, mas sim através dela é que alguma coisa é o que é, quer dizer que a forma é produzida, não como uma forma de per si subsistente, mas por ter tal forma é que a coisa é pròpriamente produzida. Neste caso, o sujeito da forma achava-se num estado potencial para receber, graças à ação da causa eficiente, esta ou aquela forma de uma espécie determinada, que, na língua latina, corresponde ao eidos aristotélico, mas na coisa.


A FORMA COMO PROPORCIONALIDADE INTRÍNSECA


Analisando êste pensamento, podemos dizer o seguinte: esta coisa é desta espécie porque tem tal forma desta espécie. Portanto, a forma é o pelo qual esta matéria é isto e não aquilo. Considerada a matéria, enquanto tal, ela seria indeterminada quanto à forma adquirida, e esta matéria tornou-se a matéria de, pela funcionalidade da forma. Para grosseiramente exemplificar, poderíamos dizer que um monte de barro, enquanto barro, não é ainda um vaso, senão quando recebe a forma do vaso, graças à causa eficiente que o modela. E, nesse momento, o barro passou a ser um vaso, pela forma que recebeu. A forma não é pròpriamente um o que (quod), que se agregou ao barro.

Apenas êste, como matéria, foi modelado, recebendo uma proporcionalidade intrínseca, assumido, assim, pela forma de um vaso, sem que pròpriamente tivesse êle aumentado ou diminuído quanto à sua matéria, mas apenas recebeu delimitações, determinações, pelas quais deixou de ser apenas um mero monte de barro para ser um vaso-de-barro.

Neste de-barro, temos o que Aristóteles chamava a causa material; na forma que recebe de vaso, a causa formal, e na acção do homem que o modelou, a causa eficiente. A forma, portanto, não tem uma substancialidade quando tomada isoladamente pelo nosso espírito que a abstraiu, segundo o ponto de vista aristotélico, como também segundo o tomista, da coisa, na qual ela estava informada. Conseqüentemente, a expressão de Tomás de Aquino de que é “através dela” que alguma coisa é, fica, nesta posição filosófica, perfeitamente esclarecida.

Podemos examinar o pensamento platônico, permanecendo ainda neste grosseiro exemplo, que, no entanto, permite clarear os horizontes que delimitam as duas doutrinas. Antes de haver surgido, feito pela mão humana, o primeiro vaso de barro, a forma vaso não era um mero nada, porque se o fôsse nunca poderia ter-se tornado existente no barro¹. [¹ Nunca é demais salientar que não se deve confundir a forma com a figura. No exemplo, sendo o vaso um ente da cultura, sua forma pode confundir-se com a figura, que é uma determinação qualitativa da quantidade. Mas um ser da natureza tem uma forma, por isso, o exemplo é grosseiro, mas serve para esclarecer.]

Mas a forma, tomada em si, não tem materialidade, portanto não é captável pelos nossos sentidos, não é um fenômeno que surja aos mesmos.

Neste ponto, tanto uns como outros estão plenamente de acôrdo. Mas o que caracteriza o pensamento platônico está nesta distinção, que é capital: a forma, se não é do mundo da aparência, é, pelo menos, do mundo da inteligência, pois pode ser captada intelectivamente, permitindo que, pela abstracção, realizada pelo nosso intelecto, possa ser tomada à parte. Neste ponto, ambos estariam de acôrdo. Surge, agora, o momento em que ambas doutrinas se separam: é que antes dessa informação da matéria, isto é, antes do barro ter recebido a forma do vaso, esta forma, se não pertence ao mundo da aparência, não pode, por sua vez, ser reduzida a um puro nada, pois, do contrário, essa certa quantidade de barro e a forma de vaso ou outra qualquer, seriam idênticas, o que repugnaria ao nosso espírito.

— Considerando assim, a forma não pode ser classificada como um puro nada, mas, sim, como alguma coisa, portanto como uma entidade, diversa da matéria, uma entidade formal no sentido do eidos de Platão, isto é, como um ser de outra ordem, que não a da materialidade; em suma, um ser imaterial.

Se o barro pode receber a forma de um vaso, fundando-nos na nossa classificação dos factôres emergentes e predisponentes, temos que reconhecer que o barro tinha a possibilidade passiva de receber essa forma. E se levássemos mais longìnquamente o nosso pensamento, poderíamos dizer que o que constitui o barro, a matéria do qual o barro vem, já continha em si, na sua emergência, a potência passiva de, por sua vez, receber a forma do barro. E como nessa peregrinação não poderíamos ir até o infinito, e encontraríamos o ser, temos de admitir que, no ser, há a aptidão para apresentar-se com tôdas as formas que já surgiram, que surgem, e que acaso venham a surgir. E essas formas não vêm de modo algum do nada, por que já estão contidas na aptidão do ser. O que as temporaliza são os momentos em que elas informam a matéria, mas, enquanto formas, elas são coeternas com o ser, e subsistem na coeternalidade do ser.

E como não têm elas a menor materialidade, não têm também uma ubiquação no espaço nem no tempo, e, dêste modo, não se pode pedir um lugar (pois êsse conceito implica espaço), onde estejam as formas, mas sim subsistem elas no mundo-verdade, que é o mundo divino do ser. Em linhas singelas, é êsse o genuíno pensamento platônico. Mas tal pensamento é decorrente do verdadeiro pensamento pitagórico. É o que vamos mostrar



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O Um e o Múltiplo em Platão, pág. 51-53, 55-58.