domingo, 22 de março de 2015

G. K. Chesterton: Alguns escritores modernos e a instituição da família



A família pode ser claramente caracterizada como a suprema instituição humana. Todos deveriam admitir que ela tem sido, até agora, a célula mãe e a unidade central de quase todas as sociedades, salvo, na verdade, de sociedades como as da Lacedemônia [1], que decidiram pela “eficiência”, e, portanto, pereceram sem deixar vestígios. O cristianismo, ainda que a revolução tenha sido enorme, não alterou tal antiga e selvagem santidade; simplesmente a inverteu. Não negou a trindade de pai, mãe e filho. Apenas leu em sentido contrário, fazendo-a passar para filho, mãe e pai. Esta não é chamada de família, mas de Sagrada Família, pois muitas coisas são santificadas ao virar de ponta cabeça. Mas alguns sábios, frutos de nossa decadência, lançaram um sério ataque à família. Refutaram-na, a meu ver, erroneamente; e os defensores protegeram-na, e defenderam-na erroneamente. A apologia habitual da família é ser, em meio à tensão e à instabilidade da vida, pacífica, agradável, e cordata. Mas há outra possível defesa da família e, para mim, evidente; a da família não ser pacífica, não ser agradável e não ser cordata.

Não é elegante, hoje em dia, tecer muitos comentários a respeito das vantagens da pequena comunidade. Dizem que devemos participar de vastos impérios e cultivar ideias grandiosas. Há uma vantagem, contudo, num pequeno estado, cidade ou vila, que apenas os deliberadamente cegos conseguem deixar de ver: o homem que vive na pequena comunidade vive num mundo mais amplo. Sabe muito mais sobre as diversidades ameaçadoras e as divergências intransigentes dos homens. O motivo é óbvio. Numa grande comunidade, podemos escolher nossos parceiros. Numa comunidade pequena, os parceiros nos são escolhidos. Assim, em todas as sociedades grandes e altamente civilizadas surgem grupos baseados no que chamamos de afinidade, e excluem o mundo real de um modo mais brusco do que os portões de um monastério. Não há nada verdadeiramente egoísta no clã; o que realmente é limitado é a camarilha. Os homens do clã vivem juntos porque todos usam o mesmo tartan [2] ou descendem da mesma vaca sagrada; mas em suas almas, pela felicidade divina, haverá sempre mais cores que em qualquer tartan. Os homens da camarilha, contudo, convivem porque têm o mesmo tipo de alma, e a pequenez deles é a pequenez da coerência espiritual e da satisfação, como o que há no inferno. A grande sociedade é uma sociedade para a promoção da limitação. É um mecanismo que visa proteger o indivíduo solitário e sensível da experiência dolorosa e fortalecedora de assumir compromissos humanos. É, no sentido mais literal das palavras, uma sociedade para a prevenção da cultura cristã.

Podemos ver tal mudança, por exemplo, na moderna transformação do que chamamos clube. Quando Londres era menor, e as regiões de Londres eram mais reservadas e provincianas, o clube era o que ainda é nos vilarejos, o oposto do que é agora nas cidades grandes. Naquela ocasião, o clube era valorizado como um lugar onde o homem podia ser sociável. Agora, o clube é valorizado por ser um lugar onde podemos ser anti-sociais. Quanto mais dilatada e complicada for nossa sociedade, mais o clube deixará de ser um lugar onde podemos ter uma discussão ruidosa, e se torna, cada vez mais, um lugar onde conseguimos desfrutar de algo fantasticamente chamado de tranquilo aparte. O objetivo de tal clube é tornar o homem confortável, e torná-lo confortável é o oposto de sociável. A sociabilidade, como tudo o que é bom, é cheia de desconfortos, perigos e renúncias. O clube tende a produzir a mais degradada das combinações — o anacoreta voluptuoso, o homem que combina a permissividade de Lúculo com a solidão insana de São Simeão Estilita.

Caso amanhã de manhã fiquemos ilhados pela neve na rua onde moramos, de repente poderemos entrar num mundo muito mais vasto e bravio do que jamais seríamos capazes de imaginar. Eis todo o afã da pessoa tipicamente moderna para escapar da rua onde mora. Primeiramente, forja a ciência sanitária moderna e vai para Margate. [3] Então, fantasia a cultura moderna e vai para Florença. Depois, inventa o imperialismo moderno e vai para Tombuctu. Vai para as fantásticas fronteiras da Terra. Finge atirar em tigres. Quase anda de camelo. E nisso tudo, em essência, ainda está fugindo da rua onde nasceu. Para essa fuga traz sempre pronta a explicação. Diz estar fugindo porque a rua é maçante. Está mentindo. Na verdade, foge da rua porque é excitante demais. É excitante porque é difícil de agradar; é exigente porque está viva. Esta pessoa pode visitar Veneza porque, para ela, os venezianos são apenas venezianos; as pessoas de sua rua são pessoas. Pode cravar os olhos nos chineses porque, para ela, os chineses são passivos e devem ser encarados. Caso olhe fixamente para a senhora idosa no jardim ao lado de casa, a senhora reagirá. Em suma, a pessoa é forçada a fugir de uma sociedade de pares demasiado estimulante — homens livres, perversos, grosseiros, deliberadamente diferentes dela. Uma rua em Brixton é excitante e opressora demais. A pessoa tem de ficar calma e tranquila entre tigres e abutres, camelos e crocodilos; essas criaturas são, de fato, muito diferentes dela. Contudo, não travam, pela forma, cor ou vestimenta, uma clara competição intelectual. Não procuram destruir os princípios da pessoa e afirmar os próprios; já os estranhos monstros da rua suburbana o pretendem fazer. O camelo não contorce o rosto num belo esgar porque o Sr. Robinson não tem uma corcova; já o cavalheiro culto do apartamento de número 5 mostra um sorriso de escárnio porque Robinson não tem um pedestal em seu apartamento. O abutre não gargalhará porque a pessoa não voa; mas, o major do apartamento de número 9 morrerá de rir porque tal pessoa não fuma. A reclamação que normalmente fazemos de nossos vizinhos é que não cuidam, como dizemos, das próprias vidas. Na verdade não pretendemos dizer que não cuidam de suas vidas. Se nossos vizinhos não cuidassem das próprias vidas, seriam bruscamente despejados por deixar de pagar o aluguel e deixariam de ser nossos vizinhos. O que realmente pretendemos dizer ao afirmar que os vizinhos não cuidam da própria vida é algo mais profundo. Não desgostamos deles por terem pouco vigor e brilho a ponto de não conseguirem se interessar por nós. Desgostamos deles porque têm demasiado vigor e brilho e também por conseguirem se interessar por nós. O que tememos em nosso vizinhos, em suma, não é a estreiteza de horizontes, mas a soberba tendência a ampliá-los. E todas as aversões à humanidade mediana têm esse caráter geral. Não são aversões à debilidade (como se julga), mas à energia. Os misantropos fingem que desprezam a humanidade pela fraqueza. Na realidade, odeiam-na pela força.

Esse retrocesso da bestial vivacidade e brutal variedade dos homens comuns é, certamente, uma coisa perfeitamente razoável e desculpável, desde que não alegue qualquer nível de superioridade. Isso ocorre quando o retroceder chama a si mesmo à aristocracia, estetismo, ou da superioridade com relação à burguesia; sua fraqueza interna e tem de ser, por justiça, ressaltada. O tédio é o mais perdoável dos vícios; no entanto, é a mais imperdoável das virtudes. Nietzsche é quem representa, de modo mais eminente, a reivindicação pretensiosa dos enfastiados, e apresenta nalgum lugar uma descrição — potente no sentido puramente literário — da aversão e desdém que o consome ao avistar pessoas comuns com rostos comuns, vozes comuns e mentes comuns. Como já disse, essa atitude é quase bela se não fosse patética. A aristocracia de Nietzsche possui, além disso, a sacralidade dos fracos. Quando nos faz sentir que não suporta os inumeráveis rostos, as incessantes vozes, a avassaladora onipresença característica da multidão, ele obterá a compreensão de qualquer um que tenha estado doente num navio a vapor ou cansado num ônibus lotado. Todo homem odiou a humanidade quando foi menos que um homem. Todo homem já teve a humanidade diante dos olhos como uma bruma, já teve a humanidade entrando pelas narinas como um odor sufocante. Mas quando Nietzsche tem a incrível falta de humor e de imaginação de nos pedir que acreditemos que sua aristocracia é uma aristocracia de músculos fortes ou uma aristocracia de vontades fortes, é preciso mostrar a verdade. É uma aristocracia de nervos fracos.

Escolhemos os amigos, escolhemos os inimigos; mas Deus escolhe nosso vizinho. Por isso chega até nós coberto de todos os imprudentes pavores da natureza; é tão estranho quanto as estrelas, tão precipitado e indiferente quanto a chuva. Ele é o homem, o mais terrível dos animais. Por isso as antigas religiões e a antiga linguagem das escrituras mostravam perspicácia e sabedoria quando falavam não da obrigação para com a humanidade, mas da obrigação para com o próximo. A obrigação com relação à humanidade pode, muitas vezes, tomar a forma de alguma escolha que é pessoal ou mesmo agradável. Essa obrigação pode ser o passatempo predileto; pode até ser um desperdício. Podemos trabalhar no East End [4]porque somos particularmente talhados para este trabalho, ou porque pensamos ser. Podemos lutar pela causa da paz internacional porque gostamos de lutar. O mais monstruoso martírio, a mais repulsiva experiência, pode resultar de uma escolha ou de uma espécie de gosto. Podemos ter o feitio de gostar especialmente de lunáticos ou ter particular interesse pela lepra. Podemos amar os negros por serem pretos ou os alemães socialistas por serem pedantes. Mas temos de amar o próximo porque está —uma razão muito mais alarmante para uma atividade muito mais séria. É um espécime da humanidade que verdadeiramente nos é dado. Justamente porque pode ser qualquer pessoa, ele é toda pessoa. É um símbolo porque é um acidente.
Sem dúvida, os homens fogem de ambientes pequenos para terras muito fatais. Mas isso é muito natural; pois não fogem da morte. Fogem da vida. E este princípio se aplica às várias esferas do sistema social da humanidade. É perfeitamente normal que os homens busquem por uma determinada variedade do tipo humano, não por mera variedade humana. É muito conveniente que um diplomata inglês deva procurar a sociedade dos generais japoneses. Mas, se o que quer são pessoas diferentes dele, estaria mais bem parado se ficasse em casa e discutisse religião com a empregada. É bastante razoável que o rapaz genial do vilarejo ascenda e conquiste Londres, se o que quer é conquistar Londres. Mas se quiser conquistar algo fundamental, simbolicamente hostil e também muito consistente, ganhará muito mais caso permaneça onde está e tenha uma altercação com o reitor. O homem numa rua de subúrbio age muito acertadamente caso vá à Ramsgate [5] por causa de Ramsgate — algo difícil de imaginar. Mas, como se diz, vá a Ramsgate “para uma mudança de ares”, então poderá ter uma mudança muito mais romântica, e até melodramática, caso pule o muro e vá parar direto no quintal do vizinho. As consequências serão mais instigantes, muito além das saudáveis possibilidades de Ramsgate.

Ora, exatamente da forma como esse princípio se aplica ao império, à nação dentro do império, à cidade no interior da nação, à rua nos limites da cidade, da mesma forma o princípio é aplicado à casa na própria rua. A instituição da família merece ser louvada, exatamente pelas mesmas razões que a instituição de uma nação ou a instituição de uma cidade merecem ser elogiadas. É bom para um homem viver numa família pelo mesmo motivo pelo qual é bom para um homem estar envolto por uma cidade. É bom para um homem viver numa família no mesmo sentido que é belo e agradável para um homem ficar preso na rua pela neve. Isso tudo o força a perceber que a vida não é uma coisa exterior, mas algo interior. Acima de tudo, todos insistem em dizer que a vida, se é uma vida estimulante e fascinante, é algo que, pela própria natureza, existe a despeito de nós mesmos. Os modernos escritores ao sugerir, de forma mais ou menos clara, que a família é uma instituição má, limitam-se a dizer, com muita perspicácia, mordacidade ou pathos, que a família nem sempre é muito conveniente. É claro que a família é uma boa instituição porque é desagradável. É saudável exatamente porque contém inúmeras divergências e diversidades. É como dizem os sentimentais, como um pequeno reino, e, como a maioria dos pequenos reinos, em geral está num estado que lembra a anarquia. Exatamente porque nosso irmão George não está interessado em nossas dificuldades religiosas, e sim no restaurante Trocadero; é que a a família tem algo das qualidades estimulantes de uma comunidade. Precisamente porque nosso tio Henry não aprova as ambições teatrais de nossa irmã Sarah é que a família se assemelha à humanidade. Os homens e mulheres que, por boas ou más razões, se revoltam contra a família, se revoltam, simplesmente, com a raça humana. Tia Elizabeth é imoderada, como a humanidade. Papai é emotivo, como a humanidade. Nosso irmão mais novo é levado, como a humanidade. Vovô é obstuso, como o mundo; é velho, como o mundo.
Aqueles que desejam, com ou sem razão, sair de tudo isso, definitivamente desejam entrar num mundo mais limitado. Estão consternados e aterrorizados com a extensão e variedade da família. Sarah deseja encontrar um mundo apenas de apresentações teatrais; George deseja pensar no Trocadero como um cosmo. Não digo, no momento, que a fuga para essa vida mais restrita não seja melhor que a fuga para um monastério. Digo, sim, que é mau e artificial tudo o que tende a fazer as pessoas sucumbirem à estranha ilusão de que estão entrando num mundo realmente mais amplo e diverso do que o próprio mundo. A melhor forma de alguém testar a própria vontade em encontrar a diversidade comum da humanidade seria descer pela chaminé de qualquer casa escolhida ao acaso, e tentar se relacionar, da melhor forma possível, com as pessoas que encontrar. E foi isso, em essência, que cada um de nós fez no dia em que nasceu.

Isto é, de fato, a novela especial e sublime da família. É romântica porque é um jogo de azar. É romântica porque é tudo o que os inimigos a acusam. É romântica porque é arbitrária. É romântica porque está aí. Enquanto grupos de homens fizerem escolhas racionais, sempre haverá certo ambiente especial e sectário. Somente quando temos grupos de homens escolhidos irracionalmente, é que temos homens. O elemento de aventura começa a existir; pois uma aventura é, por natureza, algo que vem ao nosso encontro. É algo que nos escolhe, não uma coisa que escolhemos. Apaixonar-se é muitas vezes considerada a suprema aventura, o acidente romântico último. Isto é verdade na medida em que há algo que nos é externo, algo parecido com um alegre fatalismo. O amor não nos toma, transfigura e tortura; penetra-nos o coração com a insuportável beleza da música. No entanto, uma vez que nos liguemos à questão, caso estejamos, de alguma forma, preparados para nos apaixonar e, num dado sentido, nos lançarmos nisso; uma vez que, de certa forma, escolhamos ou até julguemos — todo o apaixonar não é verdadeiramente romântico, não é absolutamente aventuroso. Neste grau, a aventura suprema não é se apaixonar. A aventura suprema é ter nascido. Aí entramos, de repente, numa armadilha esplêndida e surpreendente. Aí vemos algo que jamais sonháramos. Os pais ficam realmente à espreita e caem sobre nós, como salteadores escondidos atrás da moita. Nosso tio é uma surpresa. A tia é, como diz a expressão comum, caída do céu. Quando entramos numa família, por termos nascido, entramos num mundo incalculável, num mundo que tem leis próprias e estranhas, num mundo que poderia existir sem a nossa presença, um mundo que não criamos. Noutras palavras, quando passamos a fazer parte de uma família, adentramos num conto de fadas.

O aspecto de narrativa fantástica deve se unir à família e às relações que com ela manteremos por toda a vida. Romance é a coisa mais difícil de entender na vida; o romance é ainda mais profundo que a realidade. Pois, mesmo que a realidade se mostre enganosa, todavia não pode ser comprovada sua pouca importância ou inexpressividade. Mesmo se os fatos forem falsos, ainda serão muito estranhos. E a estranheza da vida, esse elemento inesperado e até perverso das coisas ao ocorrer, permanece irremediavelmente interessante. As circunstâncias que podemos controlar podem se tornar tratáveis ou pessimistas; mas as “circunstâncias sobre as quais não temos controle” permanecem divinas para aqueles que, como o Sr. Micawber [6], podem invocá-las e renovar as forças. As pessoas se perguntam por que o romance é a forma mais popular de literatura; perguntam por que o romance é mais lido que livros de ciência ou de metafísica. A razão é muito simples; é meramente porque o romance é mais verdadeiro que os demais livros. A vida pode, às vezes, parecer justamente com um livro de ciência. Pode às vezes parecer, e com maior justiça, com um livro de Metafísica. Mas a vida é sempre um romance. Nossa existência pode deixar de ser uma canção; pode deixar de ser um belo lamento. Nossa existência pode não ser uma justiça inteligível, ou mesmo um erro reconhecível. Mas, nossa existência ainda é uma estória. No ígneo alfabeto de cada pôr de sol está escrito: “prolongar-se-á no seguinte”. Caso tenhamos intelecto suficiente, conseguiremos terminar uma dedução filosófica e exata, e estaremos certos de que a completamos corretamente. Com suficiente capacidade intelectual conseguiremos terminar um descoberta científica e estaremos certos de que a terminamos de forma correta. Contudo, nem com o mais gigantesco intelecto conseguiremos terminar a mais simples e tola estória, e estarmos certos de que a estaríamos terminando de forma correta. A razão é que uma estória carrega consigo, não simplesmente um intelecto parcialmente mecânico, mas uma vontade, que é, em essência, divina. O escritor da narrativa pode mandar seu herói para o patíbulo, no penúltimo capítulo, se quiser. Pode fazer isso pelo mesmo capricho divino com o que ele, o autor, poderá ir para a forca, e depois para o inferno, se quiser. E a mesma civilização, a cavalheiresca civilização européia que afirmava o livre arbítrio no século XIII, produziu uma coisa chamada “ficção” no XVIII. Quando Santo Tomás de Aquino afirmou a liberdade espiritual do homem, criou todos os romances ruins que circulam nas bibliotecas.

Mas, para que a família nos seja uma estória ou romance, é necessário que grande parte dela, de qualquer maneira, seja determinada sem nossa anuência. Caso desejemos que a vida seja um sistema, ela pode vir a ser um problema; mas caso desejemos que a vida seja um drama, ela se torna algo essencial. Amiúde pode acontecer, sem dúvida, que um drama possa ser escrito por alguém de quem pouco gostamos. Mas gostaríamos bem menos, caso o autor se aproximasse perante as cortinas, a cada hora, e nos impusesse a dificuldade de inventar o próximo ato. O homem tem o controle de muitas coisas na vida; tem o controle sobre um número suficiente de coisas para ser herói de um romance. Todavia, caso tivesse controle sobre todas as coisas, seria tão herói que não haveria romance. E a razão por que a vida dos ricos é no fundo tão enfadonha e monótona é simplesmente por poderem escolher os acontecimentos. É tediosa porque são onipotentes. Não percebem as aventuras porque as fabricam. A coisa que mantém a vida romântica e plena de ardentes possibilidades é a existência de grandes limitações naturais que nos forçam a enfrentar as coisas que não gostamos ou que não esperamos. É inútil falar para os altivos modernos a respeito de permanecer em ambientes hostis. Estar num romance é estar num ambiente desagradável. Nascer nesta Terra é nascer num ambiente nada favorável, portanto, é nascer num romance. De todas as limitações e estruturas que moldam e criam poesia e variedade na vida, a família é a mais exata e a mais importante. Portanto, é mal interpretada pelos modernos, que imaginam o romance existir de modo mais perfeito num estado pleno daquilo que entendem por liberdade. Acreditam que se um homem gesticula, isso é algo tão romântico e sensacional que o sol deva cair do céu. No entanto, o que é romântico e surpreendente a respeito o sol é não cair do céu. Buscam, de todas as formas, um mundo onde não haja nenhuma limitação — isto é, um mundo onde não existam contornos; ou seja, um mundo que não possui formas. Não há nada mais vil que esse infinito. Dizem desejar ser tão fortes quanto o universo, mas realmente desejam que todo o universo seja tão fraco quanto eles mesmos.


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[1] Outro nome da cidade de Esparta, que produziu conquistadores e governantes militares, mas nunca líderes intelectuais e culturais.

[2] Tecido de lã axadrezado cujos diferentes padrões identificam os clãs escoceses.

[3] A expressão “ir para Margate” significava para os contemporâneos de Chesterton, “nadar para melhorar a saúde”. Margate é uma sofisticada cidade de veraneio inglesa, localizada no estuário do rio Tâmisa cerca de 120 quilômetros ao sudeste de Londres.

[4] Área que fica ao leste de Londres, fora das muralhas medievais da cidade. Durante o século XIX a área foi povoada por pessoas pobres e imigrantes, tornando-se sinônimo de pobreza, criminalidade e doença.

[5] Uma das grandes cidades costeiras da Inglaterra, localizada no distrito de Thanet, a oeste do condado de Kent. No século XIX, recebeu um o principal e mais moderno porto do país e a cidade se tornou um importante lugar de veraneio.

[6] Personagem do romance David Copperfield (1850) de Charles Dickens (1812-1870). Baseada no pai do autor, Wilkins Micawber, sempre esperava um futuro melhor, apesar das circunstâncias. É incauto, porém adorável, e acaba por se tornar juíz colonial.





Tradução e notas

Antônio Emílio Angueth de Araújo
Márcia Xavier de Brito

Saraiva
Livraria Cultura
Ecclesiae