domingo, 22 de março de 2015

Henry Louis Mencken | Sobre o Jornalismo


*Em 1920, Mencken fez picadinho do livro de Upton Sinclair The Brass Check, em que o autor denunciava o caráter marrom da imprensa americana e defendia o levantamento de 1,3 milhão de dólares para a criação de um semanário devotado “à verdade, a toda a verdade e nada mais que a verdade”. Um conselho de mentes infalíveis seria criado para determinar a verdade. Mencken se diverte imaginando como reagiriam os nomes apontados por Sinclair diante de situações que exigiriam um repórter de verdade — Sinclair chega a sugerir a contratação de um professor da Universidade de Washington para cobrir distúrbios de rua na capital… Em seguida, fingindo apoiar as idéias do autor, Mencken dá a sua visão sardônica e feroz do jornalismo nos Estados Unidos. (Ruy Castro)

II

O que aflige primariamente os jornais dos Estados Unidos — e aflige também o esquema regenerador do dr. Sinclair — é o fato de que o gigantesco desenvolvimento comercial desses jornais os obriga a atingir massas cada vez maiores de homens indiferenciados, e o de que a verdade é uma mercadoria que essas massas não podem ser induzidas a comprar. As causas disso estão enraizadas na psicologia do Homo boobus, ou homem inferior — ou seja, do cidadão normal, típico e predominante de uma sociedade democrática. Esse homem, apesar de uma aparência superficial de inteligência, é, na realidade, incapaz de qualquer coisa que possa ser descrita como raciocínio. As ideias que lhe entopem a cabeça são formuladas por um processo de mera emoção. Como todos os outros mamíferos superiores, ele tem sentimentos muito intensos, mas, também como eles, falta-lhe capacidade de julgamento. O que lhe agrada mais no departamento de ideias — e, daí, o que ele tende a aceitar mais como verdadeiro — é apenas o que satisfaz os seus anseiros principais. Por exemplo, anseios por segurança física, tranquilidade mental e subsistência farta e regular. Em outras palavras, o que ele exige das ideias é o mesmo que exige das instituições — ou seja, que o deixem livre da dúvida, do perigo e daquilo que Nietzsche chamou de os acasos do labirinto. Acima de tudo, livre do medo, aquela emoção básica de todas as criaturas inferiores em todos os tempos e lugares. Por isso esse homem é geralmente religioso, porque a espécie de religião que conhece é apenas um vasto esquema para aliviá-lo da luta vã e penosa contra os mistérios do universo. E por isso ele é também um democrata, porque a democracia é um esquema para protegê-lo da exploração dos seus superiores em força e sagacidade. E é também por isso que, na miscelânea de suas reações às ideias, ele abraça invariavelmente aquelas que lhe parecem mais simples, mais familiares, mais confortáveis — que se ajustam mais prontamente às suas emoções fundamentais e lhe exigem menos agilidade, resolução ou engenhosidade intelectuais. Em suma, ele é uma besta.

O problema com que se depara um jornal moderno, pressionado pela necessidade de se manter como um negócio lucrativo, é o de conquistar o interesse desse homem inferior — e, por interesse, não me refiro naturalmente à sua mera atenção passiva, mas à sua ativa cooperação emocional. Se um jornal não consegue inflamar seus sentimentos é melhor desistir de vez, porque esses sentimentos são a parte essencial do leitor e é deles que este draga as suas obscuras lealdades e aversões. Bem, e como atiçar os seus sentimentos? No fundo, é bastante simples. Primeiro, amedronte-o — e depois tranquilize-o. Faça-o assustar-se com um bicho-tutu e corra para salvá-lo, usando um cassetete de jornal para matar o monstro. Ou seja, primeiro, engane-o — e depois engane-o de novo. Essa, em substância, é toda a teoria e prática da arte do jornalismo nos Estados Unidos. Se nossas gazetas levam a sério algum negócio, é o negócio de tirar da focinheira e exibir novos e terríveis horrores, atrocidades, calamidades iminentes, tiranias, vilanias, barbaridades, perigos mortais, armadilhas, violências, catástrofes — e, então, magnificamente superá-los e resolvê-los. Essa primeira parte é muito fácil. Não se sabe de nenhum caso em que a massa tenha deixado de acreditar num novo papão. Assim que o horrendo bicho tira os véus, ela começa a se agitar e gemer: seu reservatório de medos primários está sempre pronto a transbordar.

A segunda parte não é muito mais difícil. O que se exige do remédio é que ele seja simples, mais ou menos familiar, fácil de compreender — que não represente uma provação para o centro cerebral superior — e que evite conduzir a tímida e delicada inteligência da multidão para aqueles estranhos e dolorosos caminhos da especulação. Todo o jornalismo sadio nos Estados Unidos (sadio no sentido de que floresce espontaneamente, sem precisar de auxílio externo) baseia-se firmemente em inventar e destruir papões. Assim como a política. E assim como a religião. O que reside sobre essa impostura fundamental é uma artificialidade, um brinquedo de homens com mais esperanças do que bom-senso. O jornalismo inteligente e honesto, assim como a política inteligente e honesta — são coisas que não têm lugar numa sociedade democrática. São, quando existem, curiosidades exóticas, orquídeas pálidas e viscosas, bestas em cativeiro. Tirem-lhes o vapor, a garrafa de leite, a seringa, e puf!, elas somem.