domingo, 22 de março de 2015

Paulo Francis sobre Simone de Beauvoir e Sartre


- A falta de humor de Simone era total. Seu melhor ensaio é A velhice, de que trata tragicamente, de maneira inigualável, a meu ver, e não é assunto para graça, mas mesmo aí uma pitada de humor não iria mal. Os mandarins seria um grande romance, se tivesse um mínimo de humor. Seu livro mais célebre é O segundo sexo, de 1949. Foi uma revelação para mim, quando li. Pela primeira vez vi uma mulher que não era acessório, mãe, tia, irmã, complemento do homem ou objeto de desejo sexual. Mas há o mito Simone de Beauvoir. Na verdade, a mulher foi escrava branca de Sartre. Literalmente. (FSP, 22/9/90)

- Sartre insistiu, com argumentação existencial, que experimentasse o lesbianismo. Simone, sentindo repulsa, obedeceu. Sartre deixou de ter relações sexuais com ela quando Simone tinha 25 anos… Há cartas de Simone implorando que ele lhe dê uns minutos de atenção… Que deixe de lado, por um tempo, suas femmelettes, como chamava o harém. Na carta mais patética, agradece que Sartre tenha beijado seu rosto velho. Simone tinha 39 anos. Nunca tinha tido um orgasmo com Sartre. Foi o escritor americano Nelson Algren que fez com que ela experimentasse essa consumação sexual, aos 39 anos… O segundo sexo, o livro, foi prescrito por Sartre a Beauvoir, como terapia ocupacional. Ele se cansou momentaneamente das femmelettes e resolveu se casar. Beauvoir queria se suicidar. Sartre conseguiu dissuadi-la e convencê-la de que devia escrever um livro sobre o potencial de independência da mulher. Beauvoir escreveu O segundo sexo, e feminismo em nosso tempo ganhou o seu Corão, seu Capital, sua Bíblia. Mais surpreendente ainda é que Sartre não estava sendo hipócrita. Ante uma Simone prostrada a seus pés, ele pregava sobre a autonomia e o poder de expressão da mulher. Há um indício claro, freudiano, inconsciente, de que se ressentia do seu donjuanismo, da maneira que mesmo mulheres subservientes têm de infernizar a vida dos homens. Sua melhor peça, Huis-clos, representa o inferno como um homem atormentado por duas mulheres. Sartre era um espírito livre. Ganhou milhões de dólares, como escritor, e deu tudo. No fim da vida, quase cego, bêbado e drogado, andava pelo Quartier Latin de chinelos porque não lhe sobrara dinheiro para comprar sapatos. Beauvoir, talentosa, talvez tenha escrito, ou, ao menos, completado, boa parte dos livros de Sartre. Ele passava a ela os manuscritos inacabados para que finalizasse. Há a suspeita de que tenha sido ela quem escreveu a obra-prima literário-existencial de Sartre, A náusea, sobre notas dele. E nunca sequer lhe passou pela cabeça pedir reconhecimento ou dinheiro. Sartre era o homem dela, por quem uma mulher de verdade sacrifica tudo. Amélia de Beauvoir. (OESP, 19/9/91).

– Sartre era louro e bonito, como bebê. Terminou nanico, feio, caolho, como adulto. Sartre odiava Freud. Em parte, por causa do determinismo biológico de Freud, que um discípulo de Husserl e Heidegger como Sartre não poderia aceitar, senão babau para o existencialismo. Mas, a meu ver, a raiva contra Freud vinha de que o velho o tirou na pinta. Anatomia é destino. Frase insuportável para um existencialista.

- Gingrich, ao lado da moda, aproveitou para publicar Scott Fitzgerald, Hemingway, George Jean Nathan, Aldous Huxley e outros talentos. Hefner, quando dirigia Playboy, fazia a mesma coisa. Na página ao lado dos pentelhos, Sartre discorria sobre Sartre, porque foi sempre o seu único e grande assunto.

- O essencial sobre Sartre é sua absoluta falta de originalidade como filósofo. Mamou feio em Husserl e Heidegger. Adotou-lhe o estilo vaporoso e impenetrável. Toda uma tradição de lucidez e clareza francesas morre com Sartre. Duvido que alguém consiga ler seu livro sobre Genet e sobre Flaubert. Tudo indolência, porre, anarquia anômica e, talvez, niilista. (OESP, 12/5/91)