domingo, 22 de março de 2015

Giovanni Reale — As notas definidoras do conceito de substância e as realidades às quais compete a qualificação de substância (Metafísica, de Aristóteles, vol.1)

  • a) As cinco características definidoras da substância

Aristóteles encontrava nos predecessores (pelo menos no modo como ele os entende) respostas totalmente contrastantes sobre o problema da substância ou da realidade última. Para os naturalistas, o fundo do ser era o substrato material, isto é, a matéria; para os platônicos era, ao contrário, a forma, o universal; segundo o senso comum, substância, ou seja, o que é mais real, parece ser o indivíduo e a coisa determinada e concreta.

Quem tem razão?

Para responder ao problema, Aristóteles estabelece alguns parâmetros, que permitem distinguir o que é substância do que não é substância. Desse modo ele elabora as características definidoras da substância e, embora de maneira rapsódica e pouco ordenada, as destaca em número de cinco:

1) Em primeiro lugar, pode ser chamado substância o que não inere a outro e, portanto, não se predica de outro, mas é substrato de inerência e de predicação dos outros modos de ser.
2) Em segundo lugar, só um ente capaz de subsistir separadamente do resto, de modo autônomo, em si e por si, tem estofo para ser chamado substância.
3) Em terceiro lugar, pode-se chamar de substância somente o que é algo determinado; portanto, não pode ser substância um atributo universal ou um ente de razão.
4) Ademais, característica da substância é a intrínseca unidade: não pode ser substância um agregado de partes, uma multiplicidade não organizada de matéria unitária.
5) Enfim, é característica da substância o ato e a atualidade; só será substância o que é ato ou implica essencialmente ato e não o que é mera potencialidade ou potencialidade não atuada.

Em função desse parâmetros é fácil responder ao problema inicialmente posto, ou seja, que é a substância. É a matéria? É a forma? É o sínolo de matéria e forma?

  • b) À matéria compete apenas uma das características definidoras da substância

Comecemos examinando a matéria. Ela possui, sem sombra de dúvida, a primeira característica acima enumerada: de fato, não inere a outro nem se predica de outro (em certo sentido, a própria forma é inerente a ela). Sob este aspecto, portanto, a matéria tem pelo menos um título para ser chamada substância, e compreende-se o que Aristóteles escreve no livro oito:

É evidente, portanto, que também a matéria é substância: de fato, entre todos os movimentos que ocorrem entre opostos há algo que serve de substrato às mudanças.

Todavia, a matéria não possui nenhuma das outras características distintivas da substância: não pode subsistir por si separada da forma, não é algo determinado, mas é algo indeterminado (porque a determinação deriva da forma), não é algo intrinsecamente unitário (porque, mais uma vez, a unidade deriva da forma), não é ato, mas potência e potencialidade.

Portanto, só em sentido muito fraco e impróprio a matéria é substância.

E isto explica muito bem por que algumas vezes Aristóteles afirma e outras vezes nega que a matéria seja substância: é substância se a considerarmos sob o primeiro parâmetro; não é se a considerarmos segundo os outros parâmetros.

Em Z 3 lemos:

Para quem considera o problema desse ponto de vista [do ponto de vista da primeira característica], segue-se que substância é matéria. Mas isso é impossível; pois as características da substância são, sobretudo, o fato de ser separável [segunda característica] e de ser algo determinado [terceira característica]: por isso a forma e o composto de matéria e forma parecem ser mais substância do que a matéria.

  • c) À forma competem todas as características definidoras da substância

E que características da substância acima enumeradas possuem a forma e o sínolo? Fundamentalmente todas, embora não de maneira idêntica.

a) A forma não deve sua existência, ou melhor, seu ser a outro e, neste sentido, não se pode predicar de outro: é verdade que a forma inere à matéria (e, em certo sentido, se predica da matéria), mas em sentido totalmente excepcional (de fato, inere à matéria como o que a in-forma, e possui mais ser, como logo veremos, do que a matéria; hierarquicamente e metafisicamente é a matéria que depende da forma e não vice-versa).
b) A forma é separada, ou seja, pode separar-se da matéria, em três sentidos diferentes: 1) a forma é separável pelo pensamento; 2) como já recordamos, a forma é a condição da matéria e não vice-versa e, como tal, possui mais ser, de modo que, em certo sentido, tem mais autonomia do que a matéria; 3) existem substâncias que se esgotam inteiramente na forma e não possuem qualquer matéria, e, nesses casos, a forma é em sentido absoluto separada.
c) A forma é algo determinado, como Aristóteles muitas vezes reafirma; antes, não só a forma é algo determinado, mas é algo determinante, porque é o que faz com que as coisas sejam o que são e não outras.
d) A forma é uma unidade por excelência, ela não só é unidade, mas dá unidade à matéria que informa.
e) Enfim, a forma é ato por excelência, e é princípio que dá ato, a ponto de Aristóteles, especialmente no livro H, usar o termo ato para exprimir a forma.

  • d) Também ao sínolo competem todas as características definidoras da substância

O que dizer do sínolo de matéria e de forma? Também o sínolo possui as características acima indicadas, e as possui por conseqüência, justamente porque é composto de matéria e de forma.
O sínolo, que é a coisa individual concreta, a) é substrato de inerência e de predicação de todas as determinações acidentais; b) subsiste por si e é plenamente independente das afecções; c) é algo determinado em sentido concreto; d) é uma unidade enquanto tem todas as suas partes materiais organizadas  e unificadas pela forma; e) é em ato porque as suas partes materiais são atualizadas pela forma.

  • e) Diferente grau de substancialidade da forma e do sínolo

A matéria, como dissemos acima, é muito menos substância do que a forma e do que o sínolo. Agora se põe um problema ulterior: quanto ao grau de substancialidade, forma e sínolo estão no mesmo plano, ou uma é mais substância do que o outro ou vice-versa?

A resposta ao problema é, mais uma vez, complexa e não unívoca. Em certas passagens, Aristóteles parece considerar o sínolo e o indivíduo concreto como “substância” no mais alto grau; noutras passagens, ao invés, ele parece considerar assim a forma. E quem não leia a Metafísica influenciado pela leitura do capítulo quinto das Categorias ou pela interpretação medieval ou pelos esquemas impostos pela manualística verá, sobretudo lendo o livro Z, que nisso não há contradição, como à primeira vista poderia parecer, e que não é necessário recorrer à hipótese genética ou à da aporética estrutural para explicar o fato.

Com efeito, dependendo do ponto de vista no qual nos situemos, devemos necessariamente responder de um ou de outro modo. Do ponto de vista empírico e da constatação, é claro que o sínolo ou o indivíduo parece ser a substância por excelência. Mas isso não se dá do ponto de vista estritamente ontológico e metafísico, já que a forma é princípio, causa e razão de ser, quer dizer, fundamento; e, relativamente a ela, o sínolo é principiado, causado e fundado. Pois bem, é evidente que, deste segundo ponto de vista, não o sínolo mas a forma é substância no mais alto grau, justamente enquanto fundamento, causa e princípio. Como prova deve-se ler todo o livro Z.

Em suma: quoad nos, substância por excelência é o conceito composto; em si e por natureza, ao invés, a forma é substância por excelência.

  • f) O sínolo não cobre toda a área do conceito de substância

Isto é plenamente confirmado, por outro lado, se considerarmos que o sínolo não pode esgotar a substância enquanto tal: se o sínolo esgotasse o conceito de substância enquanto tal, nada que não fosse sínolo seria substância e, por conseguinte, Deus, o imaterial e o supra-sensível não seriam substância.

A forma pode, ao contrário, ser chamada substância no mais alto grau e, portanto, por excelência: Deus e as inteligências moventes das esferas celestes são puras formas imateriais, enquanto as coisas sensíveis são formas que determinam uma matéria.

A forma, e só a forma, é o que há de comum entre o sensível e o supra-sensível.

  • g) Conclusões sobre o problema da substância

Assim o desenho da usiologia aristotélica se mostra plenamente determinado. Substância em sentido muito impróprio é matéria; num segundo sentido, mais próprio, é sínolo; num terceiro sentido, e por excelência, é forma.

Portanto, a matéria é ser, o sínolo é ser e a forma é ser; mas o sínolo é mais ser do que a matéria e a forma mais ser do que o sínolo: é mais ser do que o sínolo enquanto causa e razão do sínolo.
Compreende-se bem, portanto, a razão pela qual Aristóteles pôde definir a forma como “causa primeira do ser”.