domingo, 22 de março de 2015

G. K. Chesterton: “O homem pode ser definido como um animal que fabrica dogmas.”


O vício da noção moderna do progresso mental é estar sempre relacionado ao rompimento de laços, à abolição de fronteiras, à rejeição de dogmas. Mas se houver algo parecido com um crescimento mental, isso deve significar crescimento em direção a convicções cada vez mais definidas, que mais e mais vão se tornando dogmas. O cérebro humano é uma máquina de tirar conclusões; se não puder concluir, enferruja. Quando ouvimos falar de um homem inteligente demais para ser crível, escutamos algo que se assemelha a uma contradição em termos. É como ouvir a respeito de um prego bom demais para fixar um carpete; ou de um ferrolho muito firme para manter a porta trancada. O homem dificilmente pode ser definido, à moda de Carlyle, como um animal que fabrica ferramentas. Formigas, castores e muitos outros animais fabricam ferramentas, no sentido de utensílio. O homem pode ser definido como um animal que fabrica dogmas. À medida que empilha doutrina sobre doutrina e conclusão sobre conclusão, ao formar algum enorme esquema filosófico e religioso, está, no único sentido legítimo de que a expressão é capaz, se tornando mais e mais humano. Ao abandonar doutrina após doutrina, num refinado ceticismo, ao recusar filiar-se a um sistema, ao dizer que superou definições, ao dizer que duvida da finalidade, quando, na própria imaginação, senta-se como Deus, não professando nenhum credo, mas contemplando todos, então está, por intermédio do mesmo processo, imergindo lentamente na indistinção dos animais errantes e da inconsciência da grama. Árvores não têm dogmas. Nabos são particularmente tolerantes.

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Alguém reclamou com Matthew Arnold, creio, que ele estava se tornando tão dogmático quanto Carlyle. Arnold respondeu: “Isso pode ser verdade; mas escapa-lhe uma diferença óbvia: Sou dogmático e estou certo, Carlyle é dogmático e está errado”. O grande bom humor da observação não deve ocultar a perpétua seriedade e senso comum; nenhum homem deve escrever algo, ou mesmo falar algo, a menos que pense estar com a verdade e que os outros estejam no erro. Da mesma forma, afirmo que sou dogmático e estou certo, ao passo que o Sr. Bernard Shaw é dogmático e está errado. Mas, meu principal propósito, no momento, é fazer notar que os principais escritores sobre os quais escrevi se apresentam sã e corajosamente como dogmáticos, como fundadores de um sistema. Pode ser verdade que a coisa que mais me interessa no Sr. Shaw seja o fato de o Sr. Shaw estar errado. Mas é igualmente verdade que a coisa que mais interessa ao Sr. Shaw é o fato de estar certo. O Sr. Shaw pode não ter ninguém ao seu lado, a não ser ele mesmo; mas não se preocupa consigo mesmo. Ele se importa com a igreja grandiosa e universal da qual é o único membro.

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Uma incerteza comum em nossos dias no tocante ao uso de convicções extremas é a noção de que tais convicções, especialmente em questões muito abrangentes, foram responsáveis por aquilo que chamamos de intolerância. Contudo, um pouco de experiência direta dissipará tal visão. Na vida real, as pessoas mais intolerantes são as que não têm nenhuma convicção. Os economistas da escola de Manchester que discordam do socialismo, levam o socialismo a sério. O jovem na rua Bond não sabe o que o socialismo significa, muito menos sabe se concorda com isso, e tem certeza absoluta que os socialistas fazem tempestade em copo d’água. O homem que compreende a filosofia calvinista o bastante para com ela concordar deve compreender a filosofia católica para discordar. É o dúbio homem moderno, que não está certo sobre nada, tem certeza de que Dante estava errado. O circunspecto opositor da Igreja Latina ao longo da história, mesmo ao mostrar que ela produziu grandes infâmias, deve saber que produziu grandes santos. É o obstinado comerciante, que não conhece história e não acredita em nenhuma religião, que está, contudo, perfeitamente convencido que todos os padres são patifes. […] A intolerância pode ser definida, grosso modo, como a raiva dos homens que não têm opinião. É a resistência apresentada às idéias definidas por um grupo indefinido de pessoas cujas idéias são excessivamente incertas. […] não foram os diligentes os que perseguiram; não havia número suficiente. Foram os imprudentes que espalharam fogo e opressão pelo mundo. Foram as mãos dos indiferentes que acenderam as tochas; foram as mãos deles que produziram ruína. Da dor de uma certeza passional nasceram algumas perseguições; mas estas produziram não intolerância, mas fanatismo — uma coisa muito diferente e, de certo modo, admirável. A intolerância, em geral, sempre foi a impotência generalizada dos imprudentes esmagando os precavidos.

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Gostemos ou não, sempre teremos uma idéia geral sobre a existência. E tal visão, gostemos ou não, altera, ou mais precisamente, cria e envolve tudo que dizemos ou fazemos. Caso consideremos o cosmo como um sonho, consideraremos a questão fiscal como um sonho. Caso consideremos o cosmo como uma piada, consideraremos a catedral de São Paulo como uma piada. Caso tudo seja ruim, então devemos acreditar (se isto for possível) que a cerveja é ruim; caso tudo seja bom, seremos forçados à conclusão um tanto fantástica de que a filantropia científica é boa. Todo homem comum deve defender um sistema metafísico, e crê-lo firmemente. A grande possibilidade é a de que possa ter acreditado nele tão tenazmente e por tanto tempo que o tenha esquecido por completo.

A referida situação, com certeza, é possível. De fato, é a situação de todo homem moderno. O mundo moderno está repleto de homens que creem em dogmas de modo tão inflexível que nem mesmo sabem que são dogmas.