sexta-feira, 24 de abril de 2015

René Guénon | O Verbo como Símbolo



 Em "Os Símbolos da Ciência Sagrada"

Tradução de Constantino K. Riemma
Revisão de Bete Torii e Lívia Krassuski


Publicado na revista Regnabit, jan. 1926



Já tivemos ocasião de falar da importância da forma simbólica na transmissão dos ensinamentos doutrinários de ordem tradicional. Voltamos ao assunto para expor algumas particularidades complementares e mostrar, de modo ainda mais explícito, os diferentes pontos de vista sob os quais pode ser considerado.

Em primeiro lugar, o simbolismo nos parece especialmente adaptado às exigências da natureza humana, que não é puramente intelectual e tem necessidade de uma base sensível para elevar-se às esferas superiores. É preciso tomar o composto humano tal como é, ao mesmo tempo uno e múltiplo em sua complexidade real, fato esse que se tem grande tendência a esquecer, desde que Descartes pretendeu estabelecer uma separação radical e absoluta entre a alma e o corpo. Para uma inteligência pura, seguramente, nenhuma forma exterior, nenhuma expressão, é requerida para compreender a verdade, nem mesmo para comunicá-la a outras inteligências puras, na medida em que forem comunicáveis. Mas o mesmo não acontece com o homem. No fundo, toda expressão, toda formulação, seja qual for, é um símbolo do pensamento traduzido exteriormente. Nesse sentido, a própria linguagem nada mais é que um simbolismo. Conseqüentemente, não deve haver oposição entre o emprego de palavras e de símbolos figurativos. Esses dois modos de expressão seriam antes complementares (aliás, eles podem combinar-se, já que a escrita é primitivamente ideográfica e, às vezes, como na China, conservou esse caráter).

De um modo geral, a forma da linguagem é analítica, “discursiva”, como a razão humana, da qual é o instrumento próprio, seguindo ou reproduzindo seu desenrolar, tão exatamente quanto possível. O símbolo propriamente dito, ao contrário, é essencialmente sintético e, por isso mesmo, “intuitivo” de um certo modo, o que o torna mais apto do que a linguagem para servir de ponto de apoio à “intuição intelectual”, que está acima da razão e não deve ser confundida com a intuição inferior, à qual recorrem diversos filósofos contemporâneos. Portanto, se não nos contentarmos em constatar uma diferença e se quisermos falar de superioridade, esta estaria, apesar do que pretendem alguns, com o simbolismo sintético, que abre possibilidades de concepção verdadeiramente ilimitadas, enquanto que a linguagem, com significações mais definidas e mais determinadas, impõe sempre limites mais ou menos estreitos ao entendimento.

Que não se vá dizer, portanto, que a forma simbólica só é boa para o vulgar; o contrário é que seria verdade; ou, melhor ainda, ela é boa para todos, pois ajuda a compreender, de modo mais ou menos completo e mais ou menos profundo, a verdade que representa, na medida das possibilidades intelectuais próprias de cada um. É assim que as mais altas verdades, que não seriam de modo algum comunicáveis ou transmissíveis por qualquer outro meio, tornamse acessíveis até certo ponto desde que sejam, se pudermos assim dizer, incorporadas aos símbolos, que as dissimularão sem dúvida a muitos, mas que as manifestarão em todo seu esplendor aos olhos daqueles que sabem ver.

Isso quer dizer, então, que o uso do simbolismo é uma necessidade? Aqui, é preciso estabelecer uma distinção: de modo absoluto, nenhuma forma exterior é necessária em si; todas são de igual modo contingentes e acedentes em relação ao que expressam ou representam. É assim que, de acordo com o ensinamento dos hindus, uma figura qualquer, por exemplo, uma estátua que simboliza algum aspecto da Divindade, só deve ser considerada como um “suporte”, um ponto de apoio para a meditação; trata-se, pois, de um simples “auxiliar” e nada mais. Um texto védico oferece a esse respeito uma comparação que esclarece perfeitamente o papel dos símbolos e das formas exteriores em geral: tais formas são como o cavalo que permite ao homem concluir mais rápido uma viagem e com muito menos esforço do que se tivesse que empreendê-la através de seus próprios recursos. Sem dúvida, se esse homem não tivesse um cavalo à sua disposição, poderia apesar de tudo alcançar o seu objetivo, mas quão maior não seria a dificuldade! Se ele pode servir-se de um cavalo, seria um grande contra-senso recusálo, a pretexto de ser mais digno não recorrer a qualquer ajuda. Não será assim, precisamente, que agem os detratores do simbolismo? Além disso, se a viagem for longa e penosa, mesmo que não haja uma impossibilidade absoluta de fazê-la a pé, pode ocorrer uma verdadeira impossibilidade prática de chegar à meta. O mesmo se passa com os ritos e os símbolos; eles não são necessários por causa de uma necessidade absoluta, mas sim, de algum modo, por necessidade de conveniência, face às condições da natureza humana.

Mas não basta considerar o simbolismo pelo lado humano, como fizemos até aqui. Convém, para descobrirmos todo o seu alcance, considerá-lo também pelo lado divino, se for lícito assim dizer. Já que se constata que o simbolismo tem seu fundamento na própria natureza dos seres e das coisas, que está em perfeita conformidade com as leis dessa natureza, e se refletimos sobre o fato de que as leis naturais nada mais são que uma expressão e uma exteriorização da Vontade divina, isso tudo não nos autorizaria a afirmar que o simbolismo tem origem “não-humana”, como dizem os hindus, ou, em outros termos, que seu princípio origina-se além e acima da humanidade?

Não é sem razão que se pode lembrar, a propósito do simbolismo, as primeiras palavras do Evangelho de São João: “No princípio era o Verbo”. O Verbo, o Logos, é, ao mesmo tempo, Pensamento e Palavra: em si, Ele é o Intelecto divino, o “lugar dos possíveis". Em relação a nós, Ele se manifesta e se exprime pela Criação, na qual se realizam, na existência atual, alguns desses possíveis que, enquanto essências, estão contidas Nele desde toda eternidade. A Criação é obra do Verbo. Ela é também, por isso mesmo, sua manifestação, sua afirmação exterior. Por isso, o mundo é como uma linguagem divina para aqueles que sabem compreendê-la: Caeli enarrant gloriam Dei (Salmos 19, 2). Desse modo, o filósofo Berkeley estava certo ao afirmar que o mundo é “a linguagem que o Espírito infinito fala aos espíritos finitos”.,Todavia, ele não tinha razão ao acreditar que essa linguagem é apenas um conjunto de sinais arbitrários, já que, na realidade, nada existe de arbitrário na linguagem humana, onde toda significação deve ter, na origem, seu fundamento em alguma conveniência ou harmonia natural entre o signo e coisa significada. Por ter recebido de Deus o conhecimento da natureza de todos os seres vivos é que Adão pode dar-lhes os nomes (Gênesis 19-20). Todas as tradições antigas concordam ao ensinar que o verdadeiro nome de um ser estabelece uma unidade com sua natureza ou sua própria essência.

Se o Verbo é Pensamento no interior e Palavra no exterior, e se o mundo é o efeito da Palavra divina proferida na origem dos tempos, a natureza toda pode ser tomada como um símbolo da realidade sobrenatural. Tudo o que existe, sob qualquer forma que seja, por ter seu princípio no Intelecto divino, traduz ou representa esse princípio à sua maneira e segundo sua ordem de existência. Assim, de uma ordem à outra, todas as coisas se encandeiam e se correspondem, concorrendo para a harmonia universal e total, que é como um reflexo da própria Unidade divina. Essa correspondência é o verdadeiro fundamento do simbolismo e é por isso que as leis de um domínio podem ser tomadas para simbolizar realidades de uma ordem superior, na qual têm sua razão profunda e que constitui, ao mesmo tempo, seu princípio e fim.

Assinalemos, nesta oportunidade, o erro das modernas interpretações “naturalistas” a propósito das antigas doutrinas tradicionais, interpretações essas que invertem, pura e simplesmente, a hierarquia das relações entre as diferentes ordens de realidades. Por exemplo: os símbolos ou os mitos jamais tiveram a função de representar o movimento dos astros; a verdade é que se encontram muitas vezes figuras inspiradas nesses movimentos, mas destinadas a exprimir de modo analógico alguma outra coisa, pois as leis do movimento dos astros traduzem fisicamente os princípios metafísicos dos quais elas dependem. O inferior pode simbolizar o superior, mas o inverso é impossível Além disso, se o símbolo não estiver mais próximo da ordem sensível, como poderá cumprir a função a que se destina? Na natureza, o sensível pode simbolizar o supra-sensível, e toda ordem natural, por sua vez, pode ser um símbolo da ordem divina. E, justamente por isso, se considerarmos homem em especial, não seria legítimo dizer que ele é também um símbolo, já que foi “criado à imagem de Deus” (Gênesis, 1, 26-27)? Acrescentemos, ainda, que a natureza apenas adquire toda sua significação quando é considerada como provedora de um meio para nos elevar ao conhecimento das verdades divinas, o que também é, precisamente, o papel essencial que reconhecemos para o simbolismo. [ 1. Talvez seja útil observar que esse ponto de vista, de acordo com o qual a natureza é considerada como um símbolo do sobrenatural, não é de modo algum novo, e que, ao contrário, foi de uso na Idade Média, principalmente pela escola franciscana e, em particular, por São Boaventura. Notemos também que a analogia, no sentido tomista dessa palavra, que permite remontar ao conhecimento de Deus a partir do conhecimento das criaturas, nada mais é que um modo de expressão simbólica baseado na correspondência entre a ordem natural e a sobrenatural ].

Essas considerações poderiam ser desenvolvidas quase que indefinidamente. Preferimos, no entanto, deixar a cada um o cuidado de empreender tal desenvolvimento através do esforço de reflexão pessoal, pois nada poderia ser mais proveitoso. Tal como os símbolos que estamos estudando, estas notas devem ser apenas um ponto de partida para a meditação. As palavras, além disso, só de forma muito imperfeita podem traduzir o que estamos tratando. No entanto, existe ainda um aspecto da questão, e não dos menos importantes, que tentaremos fazer com que seja compreendido ou pelo menos pressentido, por uma breve indicação.

O Verbo Divino, dizíamos, exprime-se na Criação. E isso é comparável, analogicamente e guardadas as devidas proporções, ao pensamento expresso mediante formas (não cabe mais aqui fazer uma distinção entre a linguagem e os símbolos propriamente ditos) que o velam e o manifestam ao mesmo tempo. A Revelação primordial, obra do Verbo, do mesmo modo que a Criação, incorpora-se, por assim dizer, nos símbolos transmitidos através das idades desde as origens da humanidade. Esse processo também é análogo, em sua ordem, ao da própria Criação. Por outro lado, não poderíamos ver nessa incorporação simbólica da tradição “não-humana”, uma espécie de imagem antecipada, de “prefiguração” da Encarnação do Verbo? E isso também não permitiria perceber, em certa medida, a misteriosa relação existente entre a Criação e a Encarnação, que é seu coroamento?

Concluiremos com uma última observação relativa à importância do símbolo universal do Coração e, em particular, à forma de que se reveste na tradição cristã, ou seja, do Sagrado Coração. Se o simbolismo está em sua essência estritamente conforme o “plano divino” e se o Sagrado Coração é o centro do ser, tanto real como simbolicamente, o próprio símbolo do Coração, ou seus equivalentes, deve ocupar um lugar verdadeiramente central em todas as doutrinas que se originam, de forma mais ou menos direta, da tradição primordial. É o que tentaremos demonstrar em alguns estudos a seguir.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

A Doutrina de Buda (Ananda K. Coomaraswamy)



Biblioteca do Pensamento Vivo, vol. 19 - O Pensamento Vivo de Buda

Apresentado por Ananda K. Coomaraswamy

Tradução de Ary Vasconcelos


Capítulo: "A Doutrina de Buda"






 ABREVIAÇÕES

A. ........... Anguttara — Nikāya
AA. ......... Comentário
do Anguttara
BG. ......... Bhagavadgītā
BU. ......... Brhadarañyaka Upanishad
Com. .......
Comentário
D. ............ Dīgha — Nikāya
DA. .........
Comentário do Dīgha
Dh. .......... Dhammapada
G. S. ........ Gradual Sayings
It. ............ Ituvuttaka
ItA. ..........
Comentário do Ituvuttaka
J. ............ Jātaka
K. S. ........ Kindred Sayings
M. ............ Majjhima — Nikāya
MA. .........
Comentário do Majjhima
Mil. .......... Miliñdapañha
S. ............. Samyutta Nikāya
SA. ..........
Comentário do Samyutta
Sn. ........... Suttanipāta
Ud. .......... Udāna
Uda. ........
Comentário do Udāna
Up. .......... Upanishad
Vin. ......... Vinaya — Pitaka
Vism. ....... Visuddhimagga


A Doutrina de Buda
por Ananda K. Coomaraswamy

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"Vós não o haveis de ver senão no momento em que dêle não mais puderdes falar: pois seu conhecimento é um silêncio profundo e a supressão de todos os sentidos." Hermes Trismegisto, liv. X. 5.

Querer dar uma idéia adequada do conteúdo da doutrina budista nos seus primórdios é uma tarefa que apresenta dificuldades quase insuperáveis. Esta Lei Eterna (dhamma sanantana, akālika), que não era de modo algum uma criação intelectual de Buda por raciocínio, mas à qual êle se identificava, uma Lei ensinada por seus predecessores num passado remoto e que seria ainda ensinada por seus sucessores no futuro, o próprio Buda a declara profunda e difícil de compreender por ouvintes que tenham outra mentalidade e uma outra formação de espírito; é uma doutrina para aquêles que tenham poucas necessidades, não para aquêles que tenham muitas. Durante a sua vida e reiteradas vêzes, Buda teve necessidade de corrigir as falsas interpretações de seu ensinamento; de explicar, por exemplo, em que sentido preciso era ou não era uma doutrina de "extirpação"; ela o era no sentido que era preciso "suprimir" o egoísmo, o mal e a dor; e não o era no sentido do aniquilamento de uma realidade. Aliás, o que êle ensinava era o aniquilamento de si mesmo: aquêle que quiser a liberdade deve-se ter literalmente renunciado; para o resíduo, os têrmos da lógica do dilema "ou isto ou aquilo", não são adequados; mas seria totalmente impróprio dizer-se do Arhat que "expirou" libertado pela sua hipergnose, que "êle não sabe nem vê" (D. II, 68).


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Se os erros já eram possíveis em vida de Buda, quando, como êle o disse, acabava de reabrir um Caminho antigo há muito desprezado e obliterado por uma falsa doutrina, quanto mais inevitáveis não serão as interpretações errôneas em nosso século de progresso, de expressão individualista, de busca incessante de um nível mais elevado de vida material? Quase todos nós, salvo alguns teólogos de profissão, esquecemos que uma realidade suprema não poderia ser convenientemente definida a não ser por uma série de negações, dizendo-se sòmente o que ela não é. De qualquer maneira, como o fazia notar ainda Miss Horner em 1938, "o estudo do Budismo primitivo está ainda começando a balbuciar" (Livro da Disciplina, I, VI). Se o leitor encara o budismo como um caminho de evasão (no que não estará cometendo um êrro) pode ainda se perguntar a que êle se aplica, de onde parte e aonde vai êste caminho de evasão de que se nos afirma que "existe nêste mundo" (S. I, 128).

O que agrava as dificuldades, são os êrros de interpretação que se encontram ainda, mesmo nas obras dos eruditos. Um dos mais autorizados, por exemplo, não compreendeu que é preciso distinguir o "porvir" cuja cessação coincide com a obtenção da imortalidade, do "porvir provocado" da parte imortal de nosso ser. De fato, o "porvir" não é outra coisa que aquilo que hoje chamamos o "progresso" sem levar em conta o fato de que a transformação pode ser para melhor ou para pior; e não devemos esquecer que hoje, como então, "há deuses e homens que se comprazem com o porvir, e quando se lhes fala em fazer cessar o porvir, seus espíritos não são atraídos" (Vis. 594). Outro grande erudito afirma que o budismo primitivo "negava um Deus, negava uma Alma, negava a Eternidade" e se pretende, quase em tôda


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parte que, segundo Buda, não existe o Eu. Não se observa, portanto, que o que o Buda negou foi a realidade do Ego sempre variável, da "individualidade" psico-física; o que ele disse do Eu, do Descobridor da Verdade ou do "Assim vindo", do Homem Perfeito, depois da morte, é que nenhuma das expressões "vir a ser", "não vir a ser", "vem a ser e não vem a ser", pode se aplicar a Êle ou a êste qualquer coisa (A. IV, 384 seg., 400-401; Ud. 67, etc.). Ou então ouvimos freqüentemente afirmar que o budismo é uma doutrina "pessimista", a despeito do fato que o fim que êle nos propõe — a libertação de todos os sofrimentos mentais aos quais o homem está sujeito — é um fim que se pode atingir neste mundo e desde agora. É pelo menos não querer reconhecer que uma doutrina só se julga pelo fato de ela ser verdadeira ou falsa, não por ela nos agradar ou não.

A primeira preocupação de Buda, é o problema do mal no que se refere ao sofrimento ou dor (dukkha): em outras palavras, aquilo que é corruptível de tudo o que é nascido, composto, mutável; sua sujeição ao sofrimento, à doença, ao envelhecimento e à morte. Que esta sujeição é um fato*, que ela tenha uma causa, que esta causa possa ser suprimida; que exista um Caminho, um Trilhar, uma Viagem que permita suprimí-la, eis as "Quatro Verdades Arianas" que são o comêço da sabedoria. "Tanto no presente como até agora eu só ensino isto, a origem e o fim do mal" (M. I, 140). Resulta daí, que o budismo pode ser reduzido (e o é frequentemente) a simples fórmulas de "origem causal" (pattica samuppāda): "Isto sendo assim, aquilo vem a ser; isto

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* Tôda a raça humana é tão miserável e acima de tudo tão cega, que não tem consciência de suas próprias misérias. (Comenius, Labirinto do mundo e Paraíso do Coração, c. XXVIII). É precisamente devido a esta cegueira que Buda hesitou em pregar o Dhama a homens cujos olhos estão cobertos de pó.


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não sendo assim, aquilo não vem a ser". Devido à operação sem início das causas mediatas, é impossível evitar qualquer de seus efeitos complexos; a evasão não é possível a não ser no domínio onde opera a eficiência causal das ações passadas (kamma) e sòmente a respeito do que jamais fêz parte integrante dêste domínio.

Se a doutrina budista pode-se reduzir ao enunciado da lei da causalidade, é devido à incidência direta desta lei sôbre o problema da mutabilidade e da corruptibilidade: se podemos suprimir a causa do sofrimento, não teremos mais de nos inquietar com seus sintomas. No ciclo ou no turbilhão do porvir (bhava-cakka, sansāra), são inevitáveis a instabilidade, envelhecimento e a morte de tudo o que teve um início: viver ou "vir a ser" é função da sensação; sentir é função do desejo (tanhã, sêde); desejar é função da ignorância (avijjā = moha, ilusão). A ignorância, origem última de todo o sofrimento e de tôda a escravidão, de todos os estados patológicos de submissão ao prazer e à dor*, pertence à verdadeira natureza das coisas "que ainda estão por vir" (yathābhūtam) e participa em particular de sua inconstância (annicam). Tudo o que vem a ser é mortal; quem conseguiu pôr têrmo ao porvir, não mais está submetido ao movimento, será daí por diante, imortal. Isto nos interessa profundamente; o mais perigoso aspecto da ignorância — o verdadeiro pecado original — é aquêle que nos faz acreditar que "nós mesmos" somos verdadeiramente isto ou aquilo, e que podemos sobreviver numa espécie de identidade, de um instante ao instante seguinte, de um dia a outro, de uma vida a outra.

É por isso que o budismo não conhece a "reincarnação" no sentido vulgar e animista do têrmo; mas

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* "A ignorância é a submissão ao prazer e à dor... é ceder a si mesmo". Platão, Protágoras, 356-357.


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muitos "se enganam ainda pensando que o budismo ensina a Transmigração das almas" (SBE. XXXVI, 142; Diálogos, II, 43). Do mesmo modo que um Platão, Santo Agostinho e Mestre Eckhart, também aqui tôda a mudança é um processo de morte e de renascimento na continuidade, mas sem identidade. Não existe uma entidade permanente (satto) que se possa imaginar passando de uma encarnação a outra (Mil. 72) à maneira de um homem que deixasse sua casa ou sua aldeia, para entrar em outra (Pv. IV, 3). Pode-se mesmo dizer que a noção de uma "entidade" como a noção do "eu", se se deseja aplicá-la a uma coisa existente, é puramente convencional (S. I, 135) e que êste mundo nenhum exemplo nos oferece (Mil. 268). O que vemos perecer e surgir de novo "não sem se ter tornado outra" é uma individualidade (nāma-rūpa) (Mil. 98), uma consciência discernente (viññāna), herdeira das "obras" da outra (M. I, 390; A. III, 73). Buda bem pode ter dito que existem certamente agentes pessoais (A. III, 337 — 338); mas não se depreende, como o supunha a Sra. Rhys Davids, que "a doutrina da annatā seja reduzida ao nada" (GS. III, XIII). A posição do budismo é exatamente a do bramanismo: "Eu não sou o agente do que quer que seja; são os sentidos que se movem entre os seus objetos"; tal é a opinião do homem reprimido, daquêle que conhece a Ipseidade" (BG. v, 89; XVIII, 16-17). Certamente, o indivíduo é responsável por suas ações, herdará de suas consequências, tanto que se imaginará que êle mesmo é o agente; e ninguém é mais repreensível do que aquêle que declara: "Não sou eu quem o fêz" enquanto êle ainda está enredado na atividade (Ud. 45; Dh. 306; Sn. 661) ou aquêle que alega que o que êle fêz tem pouca importância nem em bem nem em mal (D. I, 53). Mas acreditar que eu sou o agente, ou que outrem é o agente, que eu ou outrem colheremos o que semeamos,


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é passar ao lado da verdade (Ud. 70); não existe um "eu" que age ou que herda (S. II, 252), ou para falar mais corretamente, a questão da existência real de um agente pessoal não poderia ser resolvida por um simples sim ou um simples não, mas sòmente em têrmos de origem causal em conformidade com o Caminho do meio (S. II, 19-20). Mas tôdas estas "entidades" compostas que têm uma origem causal são precisamente coisas que se analisam inùtilmente e que sempre se verifica não serem o "meu Eu"; neste último sentido (para matthikena), êste ou outrem não constituem o agente. É sòmente depois de ter perfeitamente compreendido e verificado esta proposição que nos será permitido negar que nossas ações sejam nossas; até lá, haverá coisas que devemos fazer, e coisas que não devemos fazer (Vin. I, 233; A. I, 62; D. I, 115).

Na doutrina da causalidade (hetuvāda), como na do efeito causal das ações (kamma) não há nada que implique necessàriamente uma "reincarnação" das almas. A doutrina da causalidade é comum ao budismo e ao cristianismo; tanto uma como a outra religião declaram explìcitamente crer numa sequência ordenada dos acontecimentos. Esta "reincarnação" da qual o budista quereria ser desembaraçado não é o acidente de uma morte particular ou de um renascimento particular esperado para o futuro; é todo o vertiginoso processo de morrer e de renascer muitas vêzes que caracteriza igualmente a existência neste mundo na condição humana e a existência no além, durante a eternidade, na condição divina (de um deus entre muitos outros). O Arahant realizado está por demais prevenido para perguntar: "Quem fui no passado? Quem sou no presente? Quem serei no futuro?" (S. II, 26 — 27). Para comodidade usual, êle se pode servir da palavra "Eu" sem deixar entender de qualquer maneira que a noção "Eu" ou "me" comporta


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no espírito do animista (D. I, 202; S. I, 14-15). O tempo implica o movimento, o movimento a mudança de lugar; em outros têrmos a duração traz consigo a mutação, o porvir. É por isso que a imortalidade considerada pelo budista, não está no tempo nem no espaço, mas é independente de tempo e de lugar. Para empregar têrmos pragmáticos da linguagem corrente, os quais só se aplicam às coisas que têm um princípio, um desenvolvimento e um fim (D. II, 63), poderemos dizer do Ego: "Outrora foi, depois deixou de ser; outrora não foi, depois foi; mas em têrmos verdadeiros: "Êle não foi; não será e não é atualmente: êle não é e não será "meu" (Ud. 66, Th. I, 180). O turbilhão, a roda do porvir budista não é outra coisa que δτροΧòζ τῆζ γειὲσεωζ de S. Tiago: o Ego é para o budista uma não-realidade como para Platão e Plutarco pelo próprio motivo de sua mutabilidade. A gaiola do esquilo gira, mas "isto não sou eu" e na verdade existe um meio de fugir à sua revolução.

O mal para o qual Buda buscava um remédio é o da miséria que provém da corruptibilidade de tudo o que é nascido, composto e inconstante. O sofrimento, a mutabilidade, a não-ipseidade* (dukkha, annica, anattā) são característicos de tôdas as coisas compostas, de tudo o que não é a Ipseidade; e de tôdas estas coisas o Ego, o "eu", o "si mesmo" (aham, attā) e a espécie ou a imagem exata, uma vez que é o fim do homem que nos ocupa. É um axioma que tôda a existência** (S. II, 101, etc.) se mantém

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* Em tôdas as filosofias tradicionais que assentam como axioma que há em nós uma dualidade, é de rigor distinguir o grande Eu, a Ipseidade, do "eu" ou Ego, o sábio, por assim dizer, do "entendido". Na nossa exposição, a Não-Ipseidade coincide com a aegocidade (self-isness); dizer "não-eu" (unselfishness) teria sido exprimir exatamente o contrário. É da Ipseidade sòmente que uma não-egocidade ontológica, e consequentemente, um não-eu ético, podem ser atribuídos. No momento apenas discutimos o ego, o "eu"; a questão da Ipseidade no budismo será tratada mais longe.
** Existência oposta ao "ser", como esse à essência.


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pelo alimento material ou mental, como o fogo se nutre de combustível; é neste sentido que o mundo está em fogo e que nós queimamos. Os fogos da consciência do ego, da egoeidade, são os do desejo (rāga = kamma, tanhā, lobha), do ressentimento e da cólera (dosa = kodha), e da ilusão ou ignorância (moha = avijjā). Êstes fogos só se apagam pelos seus contrários (A. IV, 445; Dh. 5, 223), pela prática das virtudes correspondentes, pela aquisição do saber (vijjā); em outros têrmos, êles não cessam de "puxar", ou com precisão, êles só se "apagam" quando lhes falta o combustível. É esta "extinção" que se chama o "expirar" (nibbāna = sanc. nirvâna) e que se encontra naturalmente assionado à idéia de um "refrescar".

O Nirvâna (para empregar a forma da palavra mais familiar aos europeus) é um têrmo fundamental da terminologia budista, e sem dúvida o mais mal compreendido de todos*. O Nirvâna é uma morte, um fim (no duplo sentido de estar "terminada" e "aperfeiçoada"). Tomada no passivo, tem tôdas as acepções das palavras gregas τελἐω, οποσϑὲνυμι, e as de ψύχω (represcar). O Nirvâna não é nem um lugar nem um efeito; êle não está no tempo, êle não se obtém por quaisquer meios; portanto é e pode ser "visto". Os "meios" empregados na prática não são em si os meios de se atingir o Nirvâna, mas meios de afastar tudo o que perturba nossa "visão" do Nirvâna, da mesma forma que um candeeiro trazido numa sala obscura nos permite ver o que aí já se encontrava.  Compreendemos agora porque o "eu" (attā) deve ser domado, vencido, refreado, rejeitado, e pôsto fora de atividade. O Arahant, o Homem Perfeito, é aquêle cujo "eu" é domado (atta-danto), cujo "eu"

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* É legítimo de o traduzir por "extinção", como se diria de um fogo: mas "aniquilamento" falseia as idéias. Para os hindus um fogo que se apaga não "sai", como em inglês (going out); "entra" (going in).


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foi despojado (atta-jaho); seu fardo foi deposto (ohita-bharo); o que tinha a fazer, foi feito (katam-karaniyam). A êle são aplicáveis todos os epítetos dados ao próprio Buda, que não tem mais qualquer nome pessoal*; é "liberto" (vimutto); é extinto (nibutto); para êle não há mais porvir: obteve o repouso da fadiga (yoga-k-kheman); é "desperto" (buddho) — epíteto que se aplica a todo Arahant e não sòmente a Buda, por excelência —; é imutável (anejo); é "Ariano"; não é mais um discípulo (sekko), é um Mestre (asekho).

O egoísmo (mamattam, "possessividade"; meccheram "mau comportamento", "lei dos tubarões") é um mal, e por conseqüência o "eu" só se doma por uma disciplina moral. Mas o egoísmo (selfishness) é mantido pela "egoeidade" self-isness (asmimāna, anatam attā ditthi), e simples mandamentos serão pouco eficazes enquanto não tivermos destruído a opinião errônea que "isto, sou eu". Pois o "eu" quer sempre se afirmar; só depois de têrmos descobertos perfeitamente a verdadeira natureza dêste "eu" inconstante é que deveremos nos pôr a combater nosso pior inimigo, e dêle fazer nosso servidor e nosso aliado. O primeiro passo será conhecer nossa situação, o segundo, desmascarar o "eu" que ficará então desobrigado conosco; o terceiro agir em conseqüência. Mas tudo isso não é fácil; estaremos muito pouco dispostos a nos mortificar antes de ter medido os agregados do desejo em seu verdadeiro valor, antes de ter aprendido a distinguir nossa Ipseidade e seus verdadeiros interêsses do nosso ego, nosso "eu" e seus interêsses. O mal fundamental é a ignorância; é pela verdade que o eu poderá ser efetivamente domado (S. I, 168). Sòmente "a Verdade vos libertará!" O remédio para o amor do eu (attakāma), é o Amor do

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* Gotama não é um nome pessoal, é um nome de família, e o próprio Ananda é também um Gotâmida.


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Eu (Ipseidade) (atta-kāma) e é precisamente neste sentido, para servirmo-nos dos têrmos de Santo Tomás de Aquino, que por caridade, o homem deve-se amar a si mesmo mais do que qualquer outra pessoa, mais que o seu próximo (Sum. Theol. II, 26, 4). E em têrmos budistas: "Que ninguém comprometa seus próprios interêsses pelo bem de outrem por maior que êle possa ser; se se conhecesse bem o verdadeiro interêsse do Eu, seria a êste fim que se deveria visar" (Dh. 166). Em outros têrmos, o primeiro dever do homem é de realizar sua própria salvação a partir de si mesmo.

É necessário proceder analìticamente, como se nos é explicado várias vêzes a propósito da "não-Ipseidade" (anattā) de todos os fenômenos. O que é necessário repudiar, é o que hoje chamar-se-ia de "animismo". O mecanismo psico-físico que reage não é um "Eu"; está desprovido (suñña) de tôda propriedade de Ipseidade. O ego, consciência ou existência "individual" (attasambhāva) é um composto de cinco fundamentos (dhātu) associados ou de cinco ramificações (khandha), a saber o corpo visível (rūpa kāya) a sensação invisível (vedana, agradável, desagradável ou neutra); o reconhecimento ou consciência (sañña); as construções, isto é, o caráter (samkhārā)*; enfim a discriminação, o discernimento, o julgamento, a apreciação (viññana)**: em resumo, é um composto do corpo e da consciência discernente (saviññānaka-kāya), é a existência psico-física. Demonstra-se por todos êstes fatores sua origem causal, sua variabilidade,

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* Samkhārā: a palavra se aplica aqui às representações mentais, imaginações, noções, postulados, complexos, opiniões, preconceitos, convicções, ideologias, etc. Num sentido mais geral, samkhārā denota tudo o que pode ser designado por um nome ou percebido pelos sentidos, isto é, todo nāmarupa: todos os objetos inclusive nós mesmos.
** Os cinco khandhas se assemelham muito às cinco "faculdades da alma" de Aristóteles (Do An. II, III) e de Santo Tomás de Aquino (Sum. Theol. I, 78, I) a saber: vegetativa (nutritiva), sensível, apetitiva, intelectual, matriz (diagnóstica e crítica).


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seu caráter perecível; não são "nossos" uma vez que não podemos dizer "que sejam (ou: nós mesmos sejamos) assim ou assim" (S. III, 66-67): não podemos constatar o que êles "vêm a ser", o que nós "vimos a ser": somos apenas uma entidade biológica, movida por impulsos hereditários*. A demonstração termina sempre por estas palavras: "Aquilo não é meu, eu não sou aquilo, aquilo não é a minha Ipseidade". Se disto vos libertais para sempre, se renunciais totalmente às noções do "eu sou Fulano", "eu sou o agente", "eu sou", será "vosso benefício e vossa felicidade" (S. III, 34). Buda, qualquer Arahant, são os "Nemo"; seria fútil perguntar seu nome.

Em outras palavras, tôda coisa, tôda individualidade é caracterizada pelo "nome e forma" (nāma — rūpa); o "nome" se aplica aos componentes invisíveis da individualidade; a "forma" ou "corpo" (pois rūpa pode ser substituido por hāya) a seus componentes visíveis e sensíveis. O que significa que "o tempo e o espaço são as formas fundamentais de nossa compreensão de tudo o que se modifica; a forma (ou corpo) de tôda a coisa está sujeita a desaparecer: seu nome permanece, e por seu nome temos ainda uma ligação com ela". É devido a seus nomes, "a Lei", "a verdade" que o Desperto sobrevive neste mundo, se bem que êle mesmo, igual ao rio que atinge o oceano, seja liberto do "nome e da forma": aquêle que é "imerso nêle" não mais faz parte de nenhuma categoria, não mais é isto ou aquilo, não está mais aqui ou lá (Sn. 1074).

Tudo isso não é particularmente budista; é a substância de uma filosofia mundial, para a qual a salvação consiste essencialmente em salvar o homem de si mesmo:

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* I. Paul, The Annihilation of Man, 1945, p. 156


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Deneget seipsum! Si quis... non odit animam suam, non potest meus discipulum esse!

"A alma é vosso maior inimigo"¹. "Se não tivesse seus empecilhos, quem ousaria dizer 'sou eu'"². O eu é a raíz, a árvore e os ramos de todos os males de nossa queda³. "É impossível captar duas vêzes a essência de qualquer coisa mortal... num único e mesmo instante ela chega e se dissipa"4. Poder-se-ia multiplicar as citações dêste gênero. O que menos se sabe, é que muitos naturalistas e psicólogos modernos chegaram às mesmas conclusões. "O naturalista sustenta que os estados e os fatos ditos mentais existem sòmente onde se encontram certas organizações de coisas físicas e que êles não são apresentados por estas coisas enquanto elas não são assim organizadas. O objeto organizado só faz manifestar as reações de seus componentes,  êle não é um elemento adicional que dirige as reações de suas partes organizadas." Até lá, é de modo idêntico que o naturalista e o budista interpretam as reações do "objeto organizado", mas o primeiro se identifica ao objeto que reage5, enquanto que o budista assegura que não há objeto que eu possa chamar "meu Eu". Ao contrário os psicólogos, por uma extrapolação do ego, fazem ainda, como os budista que encaram a possibilidade de alguma outra coisa que o ego, que pode sofrer uma "beatitude infinita". "Se constatamos que tudo é fluido... constatar-se-á que a individualidade e a falsidade

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¹ Al Ghazāli. Al — Risaltal Laduniyya, cap. II.
² Rumi: Mathnawt, I, 2449.
³ W, Law. Hobhouse, p. 219.
4 Timeu, 28 A. Cf. Crátilo, 440. Plutarco, Moralia 392 B. Para a doutrina budista do "instante" (khana) em que as coisas nascem, amadurecem e chegam ao fim, ver Vis, I 239, e os desenvolvimentos da idéia nos textos mahâyânicos.
5 Identificação que volta à proposição animista: "Penso, logo existo", e implica o conceito ininteligível de um único agente que pode querer coisas contrárias um único e mesmo momento. Pareceria que, para permanecer lógico, o positivista devesse negar a possibilidade de tôda a direção de si mesmo; é talvez o caso.


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são apenas uma única e mesma coisa"; donde êste corolário como na doutrina do annatā, que "nós" somos diversos da nossa individualidade. "Nesta individualidade de cada um de nós, êste 'eu' que é tradicional (isto é, habitual) colocarmos em evidência... temos a mãe de tôdas as ilusões;... o drama desta ilusão da individualidade é que ela conduz ao isolamento, ao temor, à suspeita quase paranóica, a ódios absolutamente inúteis". "Cada um seria infinitamente mais feliz se aceitasse a perda de seu "eu individual" e, como o diz Buda, não teria mais preocupações com aquilo que não tem realidade". "Na época do racionalismo científico, que se tornara a psique? A palavra se tornara sinônimo de consciência... não havia psique fora do ego... Quando o destino da Europa a fizera participar de uma guerra de quatro anos de um horror sem igual... ninguém compreendeu que o homem europeu estava possuído por alguma coisa que o despojava de seu livre-arbítrio." Mas, além, e acima dêste ego, há uma Ipseidade "em tôrno da qual êle gira, mais ou menos como a terra gira em tôrno do Sol"; todavia, "desta relação nada não é conhecível intelectualmente, porque nada podemos dizer do conteúdo da Ipseidade*". Da Ipseidade, que nos diz o Budismo? — "Isso não é meu Eu" (na me so attā); palavra que, com a expressão "não — Ipseidade" (anattā) servindo para qualificar o mundo e tôdas as "coisas" (sabbe dhammā anattā)**, está na

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* Os naturalistas e os psicólogos que acabamos de citar são: Dewey, Hooke e Vagel; Charles Pierce, H. S. Sulliman, E. E. Haddley, C. J. Jung. Vê-se que este último, que fala da "necessidade absoluta de dar um passo além da ciência" é metafísico sem o querer. Não damos estas citações para provar a exatidão da análise budista, mas com o único intuito que o leitor possa compreender melhor esta última: O provérbio inglês diz: "é comendo o 'pudding' que se sabe se êle é bom". As palavras sublinhadas o são pelo autor da presente obra.
** Idêntico àquela do bramanismo: "Dos que são mortais não existe o Eu" (anātmā hi martyah. SB. II, 2, 2-3).


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base da opinião errônea que o budismo "nega (não sòmente o eu mas também) o Eu". Mas basta considerar os têrmos em boa lógica para se perceber que êles implicam a realidade de um Eu, o qual não é nem uma parte nem a totalidade das "coisas" que se declara não lhe atribuir. Como o diz Santo Tomás de Aquino, "As coisas primárias e simples são definidas por negações: um ponto, por exemplo, se define 'o que não tem partes'". Dante faz notar que há "coisas que o nosso intelecto não poderia contemplar... só podemos compreender sua natureza formulando negações a seu respeito". Era também a atitude da antiga filosofia hindu no seio da qual o budismo nasceu: qualquer coisa que se possa dizer do Eu, não é "assim". Reconhecer que "nada de verdadeiro poderia ser afirmado a respeito de Deus", não é certamente negar sua essência!

Quando se insiste na questão "Existe um Eu?" Buda recusa responder sim ou não. Dizer sim seria participar do êrro "eternalista"; dizer não, do êrro "aniquilacionista" (A. IV, 400-401). Da mesma forma, quando surge a questão do destino no além de um Buda, um Arahant, do Homem em Si, êle responde que não se lhe poderia aplicar qualquer dos têrmos "torna-se" (hoti) ou "não se torna"; nem se torna, nem não se torna; "torna-se ao mesmo tempo que não se torna". Pois qualquer uma destas proposições implicaria a identificação de Buda com tudo ou parte dos cinco fatôres da personalidade; todo porvir implica uma modalidade: ora, Buda é exterior a todo o modo. É preciso notar que a questão está sempre redigida em têrmos de "porvir", não de ser. A lógica da linguagem só se aplica à coisas fenomênicas (D. II, 63): Ora, o Arahant não está contaminado por nenhuma destas "coisas"; não há expressões verbais para aquêle cujo eu não mais existe; aquêle


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que se "recolheu em si mesmo" não mais se encontra em nenhuma categoria (Sn. 1074, 1076). Todavia afirma-se ainda que Buda "é" (atthi), se bem que êle não seja visível "aqui ou lá"; e nega-se que um Arahant "não seja" além da morte. Mas se verdadeiramente não fica absolutamente nada quando o eu não existe mais, somos forçados a nos perguntar de que uma imortalidade poderia ser o atributo? Querer reduzir uma realidade à nulidade do "filho da mulher estéril" só conduz ao absurdo, ou ao ininteligível; aliás Buda, repudiando as doutrinas "aniquilacionistas" que heréticos de seu tempo lhe atribuíam, nega expressamente ter jamais ensinado a destruição de algo real (sato sattasa) (M. I 137, 140). "Bem que existe, diz êle, um não-nascido, não-tornado, não-feito (akatam)*, não composto (asamkhatam)** e, se não existisse, não haveria evasão possível para o que é nascido, tornado, feito e composto" (isto é, do mundo) (Vd. 80) "Tu és o Conhecedor daquilo que jamais foi feito (akataññū), ó Brahman, tendo conhecido o declínio de tôdas a coisas compostas".

Buda afirma que êle "nada dissimula" que êle não estabelece uma distinção entre o interior e o exterior, que "sua mão não está fechada" (D. II, 100). Mas a Lei Eterna e o Nirvâna são "não-compostos e por êste valor transcendente (param'attha) não existem palavras

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* O "mundo não feito" (Brahmaloka) dos Upanishads.
** "Incomposto", isto é, sem origem, desenvolvimento ou mutação (A. 1, 152); o Nirvâna (Mil, 270); o Dhama (S. IV. 359). Por outra parte, os "estados" contemplativos, mesmo os mais elevados, são compostos: e é dêstes próprios estados sublimes que existe uma evasão derradeira.


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adequadas: all'alta fantasia qui manco possa (Dante, Paraíso XXXIII, 742); isto será objeto da fé (saddhā) do discípulo até que disto êle tenha experiência, até que o conhecimento venha substituir a Fé. "Aquêle cujo espírito está abrasado com o desejo do Indizível (anakkhātā), êsse está liberto de todos os amôres, nada contra a corrente (Dh. 218). Os Budas só fazem proclamar "a Via" (Dh. 276). Se pode ter uma salvação pela fé (Sn. 1146), é porque "é a fé que conduz o melhor ao conhecimento" (S. IV, 298): crede ut inteligas. Quem diz fé diz autoridade; a autoridade de Buda (mahāpadesa) que repousa sôbre sua experiência imediata é aquela de suas palavras tais como êle as pronunciou, ou tais como foram narradas pelos monges-mendicantes competentes; neste último caso, elas não sòmente foram corretamente compreendidas, mas ainda verificadas quanto à sua conformidade com os textos canônicos e a regra. Esta dependência da etapa inicial sôbre o que ainda não foi "visto" não é exclusivamente budista e não exige uma particular credulidade. A matéria do ensinamento de Buda é sempre o que êle afirma ter visto e verificado pessoalmente: e isso, êle assegura a seus discípulos que êles também o poderão ver e verificar se êles o seguirem na sua viagem com Brahma. "Os Budas apenas indicam o Caminho; cabe a vós fatigar-se com a tarefa" (Dh. 276); o Fim permanece indizível (Dh. 218); êle não possui sinal (S. I, 188, Sn. 342); é uma gnose que não é comunicável (A, III, 444); aqueles que só confiam no que pode ser dito estão ainda sob êste jugo da morte (S. I, 11).

Quando se discute a questão da Fé, esquece-se demasiadamente que nosso conhecimento das "coisas", mesmo as que regem nossos atos mundanos, está na maior parte baseado na autoridade. Pode-se dizer que a maioria de nossas atividades  diárias cessaria se deixássemos


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de acreditar nas palavras daqueles que viram o que ainda não vimos, mas que poderíamos ver fazendo o que êles fizeram, indo onde êles foram: do mesmo modo as atividades do neófito budista terminariam se êle não "acreditasse" nesta finalidade que êle ainda não atingiu. De fato, êle acredita que Buda lhe disse o que é verdadeiro, e age em consequência (D. II, 93). Sòmente o Homem Perfeito é "sem fé" pois nêle o conhecimento do Não-feito susbtituiu a Fé (Dh. 97) e esta não mais lhe é útil. Para o budista, o Dhamma, a Lex Aeterna, sinônimo da Verdade* (S. I, 169) é a autoridade suprema, o "Rei dos reis" (A. I, 109; III, 149). É com esta última autoridade, fora do tempo e temporal ao mesmo tempo, transcendente e imanente, que Buda se identifica, identifica a Ipseidade na qual êle se refugiou: "Aquêle que vê o Dhamma me vê, aquêle que me vê, vê o Dhamma" (S. III, 120; it. qi; Mil. 73). Entre as escrituras budistas, uma das mais grandiosas é intitulada o Dhammapada: "as Marcas da Lei"; é um itinerário, um guia para aquêles que "marcham na Via da Lei" (dhammacariyam caranti), a qual é também a "Via de Brahma", "a viagem com Brahma" (brahmacariyam), "a antiga estrada que seguiram os Todo-Despertos de outrora". Os têrmos budistas para dizer a "vereda" (magga) e a "busca" (gavesana)** da qual Ipseidade é o objeto (Vin. I, 23; Vis. 393), indicam implìcitamente que é necessário seguir uma pista, nas marcas***. Mas estas pistas terminam quando a margem do Grande Mar é atingida. O monge-mendicante que era até então um discípulo (sekho) é daí por

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* "Uma lei superior a nossos espíritos, chamada Verdade", Santo Agostinho, De Vera Relig. XXX, Cf. Santo Tomás de Aquino, Sum. Theol. II-I, 91-2.
** Cf. a história de Gavesin, p. 69.
*** Como em Platão, ou em Mestre Eckhart, a alma seguindo a pista de sua prêsa, o Crito.


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diante um perito (asekho); não está mais sob a direção de um preceptor (Gal. III, 25). A Via prescrita é a do aniquilamento do eu, da virtude, da contemplação; é necessário caminhar sòzinho com Brahma; mas uma vez atingido o fim desta longa estrada quer seja neste mundo quer no outro, nada mais resta que o "mergulho" no Imortal, no Nirvâna (amat'ogadham, nibbān'ogadham), neste oceano insondável que é ao mesmo tempo a imagem do Nirvâna, do Dhama e do próprio Buda (M. I, 488, 494; S. IV, 179, 180; v, 47; Mil, 319, 346). É uma velha comparação, comum aos Upanishads e ao budismo: quando os rios atingem o mar, perdem nome e forma, só se fala "mar". A vocação monástica é já uma prefiguração dêste fim; semelhantes aos rios que atingem o mar, os homens de tôda a casta que se tornaram monges-mendicantes não mais são designados pelo seu antigo nome ou sua antiga linhagem: pertencem sòmente à linhagem daquêles que procuram a Verdade e a encontraram (Dh. 239).

"A gôta de orvalho desliza para o mar resplandecente". Sim, mas a fórmula não é exclusivamente budista: nós a encontramos em Rūmī (Nicholson, Dīwān, XII, XV; Mathmawī, passim), em Dante (sua voluntade... è quel mare al qual tutto si muove (Par. III, 84), em MEstre Eckhart (also sich wandelte der Tropfe in das Meer... "o mar da insondável natureza de Deus: mergulha dentro, é o afogamento"), em Angelus Silesius (wenn Du das Tröpflein weisz im grossen Meere nennem, denn weisz Du meine Seel'im grossen Gott erkennem, [Christl. Wandersmann, II 25]) e também na China, onde o Tao é o oceano ao qual tudo regressa (Tao-te-king, XXXII). De todos os que o atingem pode-se sòmente dizer que sua vida é oculta, enigmática. Buda, que cada um o pode ver presente em carne e osso é desde agora "impossível de atingir" (anupalabhyamāno); não


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é mais "descobrível" (ananu vejjo); um ser assim "mergulhado em si mesmo" não poderia mais ser relacionado a qualquer categoria (sankham na upeti [Sn. 1074]). Pois, "não há ninguém, que me vendo sob uma forma qualquer, possa me ver"; "nome e aspecto não me pertencem". "Sòmente aquêle que vê a Lei Eterna, vê Buda, hoje mesmo tão efetivamente que quando o Mestre estava ainda revestido com sua personalidade (persona, máscara, disfarce) que, no momento de sua morte, êle fêz estalar como uma cota de malhas" (A. IV. 312).

Acabamos de deixar perceber a identidade do Mar dantesco com o Mar budista, parecendo introduzir uma significação deísta nas doutrinas pretensamente atéias do budismo; bastar-nos-há fazer notar que não existe uma verdadeira distinção a estabelecer entre a imutável Vontade de Deus e a Lex Aeterna, sua Justiça de Sabedoria, esta natureza que é a sua Essência, contra a qual não se poderia agir sem negar a êle mesmo. A Lei, Dhamma, fôra sempre um nomen Dei: no budismo a palavra conserva-se sinônima de Brahma. Se Buda se identifica à Lei Eterna, isto significa que êle não poderia pecar; não está mais "sujeito à Lei"; sendo êle mesmo a Lei, êle só pode agir em conformidade com ela, e entre as interpretações do epíteto "Assim vindo" ou "Descobridor da Verdade", encontramos esta: "como fala, age". Mas para aquêles que ainda são viajantes inexperientes, o pecado (adhamma) é muito precisamente um delito contrário à Lei Natural, isto é, a parte da Lei Eterna que determina as responsabilidades e as funções do indivíduo. Em outras palavras, a Lei Eterna tem seu correlativo imanente na "lei pessoal" (sadhama [Sn. 299]) de cada um, que determina suas inclinações naturais e suas funções próprias (attano kamma); é por cupidez ou por ambição que o indivíduo é tentado a desprezar o horóscopo que normalmente


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o protege (Sn. 314, 315). Notamos isto de passagem, porque é um êrro muito difundido crer que Buda "atacava" o sistema de castas. O que êle fazia na realidade, era distinguir aquêle que só é brâmane por seu nascimento daquêle que é um verdadeiro brâmane por sua gnose, e lembrar que a vocação religiosa está aberta aos homens de qualquer origem (A. III, 214; S. I, 167): idéia que nada tinha de novo. A casta é uma instituição puramente social: ora, Buda se dirigia principalmente àqueles cujas preocupações não são mais sociais: em relação ao chefe de família êle diz que sua enteléquia é a perfeição de seu trabalho (A. III, 363), e sòmente são condenadas as atividades que prejudicariam a outrem. Os deveres do Soberano são muitas vêzes enumerados. O próprio Buda era um personagem real, pois instituiu uma Lei; mas era brâmane por personalidade (Mil. 225-227). Os brâmanes só são criticados quando não permanecem à altura de sua antiga norma. Em muitas passagens, "brâmane" é sinônimo de "Arahant".

Pretendeu-se que o Budismo só conhecia o deus pessoal Brahmā, de modo algum a Divindade, Brahma, o que teria sido estranho na Índia do século V antes da nossa era, sobretudo num antigo discípulo dos brâmanes, e em textos que contêm tantas reminiscências dos Brāhmanas e dos Upanishads. De fato, não se poderia duvidar que na expressão gramaticalmente ambígua brahma-bhūto que define o estado dos totalmente libertos, é Brahma que se deve ler e não Brahmā; aquêle que está "plenamente desperto", é Brahma que êle "veio a ser". E com efeito: 1º nossa atenção é freqüentemente atraída para o conhecimento relativamente limitado de um Brahmā; 2º os Brahmā são (por conseguinte) os discípulos de Buda, não é êle que é discípulo dêles (S. I, 141-145; Mil. 75-76); 3º em seus nascimentos anteriores, Buda já tinha sido um Brahmā e um Mahā-Brahmā (A. IV, 88-90);


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seria portanto absurdo, na identidade brahma bhūto = buddho (A. V, 226; Dh. III, 84; It. 57, etc.) admitir que brahma = Brahmā; 4º está dito explicitamente que Buda é "bem mais que um Mahā-Brahmā" (Dh. A. II, 60). É verdade que os brâmanes, falando a Buda, o chamam freqüentemente Brahmā (Sn. 293, 479, 508), mas nestas passagens Brahmā não é o nome do deus, mas, como em Skr., a denominação de um verdadeiro e sábio brâmane* e o equivalente de Arahant (Sn. 518, 519). Quanto aos deuses (deva) por exemplo, os Indras, os Brahmās e muitas outras deidades menores, ou anjos, não é sòmente verdade que êles possuem ao menos tanta realidade que os homens, e que Buda, como outros Arahants visitam seus mundos e falam com êles; aliás Buda é "o mestre dos deuses bem como dos homens" (S. III, 86); e o que melhor, em respostas aos seus interrogadores, declara absurda a idéia que "não existe outro mundo" (como o sustentam os adeptos do "nada mais", que hoje chamaríamos positivistas [M. I, 203]) e a opinião paradoxal que "os deuses não existem" (M. I, 211). Considerando enfim que as mesmas proposições se aplicam ao Eu e a Buda — por exemplo, esta que nem um nem outro podem legìtimamente se definir na forma "ou isto, ou aquilo", não sòmente a paráfrase de "Buda", é: aquêle cujo Eu é desperto** (Vis, 209; cf. BU, IV, 4, 13); mas não é apenas duvidoso que o Comentador tenha razão ao afirmar que, nestas passagens, o Descobridor da Verdade, o "assim vindo", é o Eu (Ud. 67 com UdA. III, 40). Buda não é

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* No ritual védico, o Brahmā é o mais sábio dos quatro oficiantes brâmanes, sua autoridade em tôdas as questões duvidosas; deduz-se que Brahma é o título mais respeitável que um brâmane possa dar a outro quando a êle se dirige.
** Budh, atta buddho, Vis. 209; cf. BU, IV, 4, 13, pratibunddho ātmā. O "Eu desperto" será o "Eu que foi submetido à mutação" (bhavit'attā, passim), isto é, o "Eu não nascido (ajāta'attā) que não envelhece nem morre" (DhA. I, 228 cf, BG, II, 20).


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apenas um princípio transcendente — Lei Eterna e Verdade — é também universalmente imanente como "Homem neste homem": pode-se deduzí-lo do epíteto "Todo no interior" (vessantara = sansc. vicvāntara [M. I, 386; It. 32]) que se lhe aplica, como das palavras: "Que aquêle que me deseja tratar, trate dos doentes" (Vin, I, 302) espantosamente análogas às de Cristo: "O que tiverdes feito por um dos menores dêstes meus irmãos, te-lo-eis feito por mim".

Em todos os escritos canônicos do budismo, procurar-se-ia inùtilmente a afirmação de que não existe o Eu, nem realidade distinguível do eu empírico que sofre repetidamente a decomposição destrutiva. Muito ao contrário, o Eu é afirmado explìcitamente; em particular na expressão que reaparece freqüentemente para dizer que isto ou aquilo "não é o meu eu". Não devemos esquecer o axioma nil agit in seipsum, nem o que diz Platão: "Quando em um indivíduo, num mesmo momento, a propósito da mesma coisa, constatamos dois impulsos contrários, dizemos que nêle deve haver dois sêres." (Rep. 604 B). É o caso, por exemplo, quando o Eu é amigo ou o inimigo do eu-Ego (S. I, 57, 71-72; como em B. G. VI, 5-7) e sempre que existe uma relação entre os dois "eu". Cabe ao budista  "honrar aquilo que é mais que o eu" (A. I, 125) e êste "mais" só pode ser "o Eu Ipseidade", senhor do eu, e "finalidade do eu" (Dh. 380). É do Eu, e não certamente de si mesmo que fala Buda quando diz: "Tomei refúgio no Eu" (D. II, 120) ou quando êle ordena aos outros a "procurar o Eu" (Vin. I, 23; Vis. 393), de "fazer do Eu vosso refúgio e vossa candeia" (D. II, 101; III, 42; cf. S. III, 143). Estabelece igualmente uma distinção entre "o Grande Eu" (mah'atta, "Mahātmā", o magnânimo), e "o Pequeno eu" (app'ātumo, o pusilânime);


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entre "o Belo Eu" e o "eu vilão": o primeiro reprova o segundo quando um êrro foi cometido (A. I, 57; I, 149; S. V, 88). Enfim, é absolutamente certo que dizer que Buda "negava um Deus, negava uma Alma, negava a Eternidade" é falso.

Em muitas passagens, diz-se de Buda e outros Arahantes ou Homens Perfeitos que êles "fizeram realizar o Eu" (bhavit'atto): "fizeram realizar", da mesma maneira que "uma mãe educa seu filho único"; com efeito esta forma causativa do verbo "realizar" — é muito incômodo que ela falte em nossas línguas — tem o sentido de "educar", "tratar", "cultivar", "servir", "prover às necessidades de", como θεοαπευω. Transformar o Eu é uma parte indispensável da tarefa que incumbe ao budista, tão indispensável como sua contraparte negativa, por fim a todo "porvir". Se uma tarefa é terminada, outra o é ao mesmo tempo, e o fim é atingido. "É assim, diz Woodsworth, que construímos o ser que somos". Mas o sábio moderno deve distinguir com grande cuidado o "porvir" — que é um simples metabolismo, um processo não dirigido de desenvolvimento automático, do "progresso", do "realizar" que é uma cultura seletiva. O que se "realiza" é ùnicamente o eu empírico, composto de corpo e de consciência (viñña). Fora da constituição corporal, a consciência não pode surgir; nossas "habitações de outrora", isto é, nossas vidas anteriores, são compostas dêste gênero, mas elas "não são minhas", "não são meu Eu" (S. III, 86); a propósito do religioso que suprimiu nêle as condições que trariam uma mutação renovada de sua consciência, nos é dito que é um ser cujo Eu se libertou, existente, plenamente satisfeito, e que sabe que para êle não há mais nascimento, mais porvir (S. III, 55).

O fim último não é sòmente atingir os mundos de Brahma ou de se tornar um Brahmā; certamente que é


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um prodigioso êxito o de se tornar um Brahmā ou, o que é bem mais, o Mahā-Brahmā de presente idade; mas não é a mesma coisa ter-se tornado Brahma, um Buda e Arahant totalmente extinto. A distinção entre Brahmā e Brahma, transposta no vocabulário cristão, seria aquela que existe entre Deus e a Divindade; os textos budistas serão esclarecidos pela citação de proposições análogas tiradas de dois místicos cristãos entre os maiores e os mais intelectuais. Ei-los:

Mestre Eckhart diz: "Convém aprender o que são Deus e a Divindade. Deus trabalha, a Divindade não faz trabalho algum. Deus torna-se e não se torna (wirt und entwirt); êle é a imagem de todo o porvir (werdende) mas a natureza do Pai não "vem a ser" (unwerdentlich ist) e o Filho é um com Êle neste não porvir (entwerdende). O porvir temporal termina no eterno não-porvir" (Pfeiffer, 516 e 497). Pois "é mais essencial que a alma perca Deus, do que ela perca as criaturas" (Evans, I, 274) se ela deve atingir êsse estado em que seremos "tão livres como quando não éramos, livres como a Divindade em sua não-existência". "Por que não se fala da Divindade? Porque tudo o que ela é em si é apenas uma só e mesma coisa, e que nada há a dizer... Quando retornar ao solo, às profundezas, à fonte da Divindade, ninguém me perguntará de onde vim ou o que fui" (Pfeiffer 180-181). "Nossa essência não é aniquilada, embora não devêssemos ter nem conhecimento, nem amor, nem beatitude: isso se torna como um deserto onde sòmente reina Deus*". É por isso que o autor desconhecido do Livro de Conselho Privado e

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* A "não-existência", a "fonte", o "deserto" de Mestre Eckhart são análogos ao Mar dos budistas de que falamos, onde desaparece a diferenciação (cf. a definição da theosis em Nicolas de Cuse: ablatio omnis alteritatis et diversitatis) e ao Mar do Amor, a Não-existência de Rūmi, onde o Amante se torna o Amado (Mathnawī, I, 504 1109; H. 688-690; III, 4723: VI, 2771 e passim, com os comentários de Nicholson).


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da Nuvem da Ignorância faz uma distinção entre aquêles que são chamados à salvação e aquêles que são chamados à perfeição: citando a escolha de Maria "que tomou a melhor parte, aquela que não lhe será arrebatada" (Livro do Conselho Privado, f. 105 a) êle diz a propósito da vida contemplativa que "se ela começa neste mundo, ela durará eternamente" e acrescenta que nessa outra vida "não mais será necessário praticar obras de caridade nem chorar pela nossa miséria" (Livro do Conselho Privado, cap. XXI).

Os paralelos dêste gênero ajudarão às vêzes melhor a compreender o conteúdo do budismo que as citações diretas do canon búdico: colocam o leitor na medida de passar de um vocabulário que êle conhece a uma linguagem que conhece menos. É quase inútil dizer que para o leitor ou o erudito europeu que se propõe estudar sèriamente uma religião oriental, um conhecimento amplo da doutrina e do pensamento cristão e seu ambiente grego, é quase indispensável.

Os dois "eu" se encontram numa dramática oposição quando um dirige censuras ao outro. "O Eu repreende o eu (attā pi attanam upavadati) quando se faz o que não se devia fazer (A. I, 57-58); por exemplo, quando o Bodhisatta mendiga seu alimento pela primeira vez. Os restos pouco apetitosos que lhe dão enojam-lhe o coração, mas "êle se censura e não se deixa abater" (J. I, 66). O Eu sabe o que é verdade e o que é falsidade; o eu Feio não pode dissimular sua má ação ao Belo Eu (A. I, 149). O Eu é pois nossa consciência, nosso saber interior, nossa syntêrêsis, o Daimon socrático "que só ama a Verdade" é que "sempre me reprime do que meu eu queria fazer".  Todos os homens sabem por experiência que há "uma coisa na alma", como diz Platão, que os convida a beber e uma coisa que lhes proíbe; uma tem fome e sêde, a outra "faz as contas" e cabe a nós


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decidir qual das duas será soberana, a melhor ou a pior. O "Eu" é o Agathos Daimon; cabe a "mim" obedecer-lhe.

Isto nos leva a considerar a doutrina da "pureza do Daimon" (yakkassa suddhi). Não nos importemos com o fato que os gênios possam ser múltiplos, da mesma maneira que outras tradições conhecem uma multiplicidade de outros espíritos além do Espírito; admitiremos que o Daimon por excelência (sansc. yaksha) fôra, a princípio, e era ainda nos Upanishads, Brahma: êste Brahma que é ao mesmo tempo transcendente, e, como o "Eu do eu", imanente. Os próprios Sākyas tinham sido os adoradores do Yakkha Sākyavardhana, que mui provàvelmente não passa da natureza "sempre fecunda". No budismo, Buda tão freqüentemente qualificado de "Tornado Brahma" (brahma-bhūta), é também chamado um Yakkha, um Daimon, do qual falamos de passagem sôbre a "pureza". Buda é "não-contaminado" (anūpalitto), totalmente "expirado", chegado ao têrmo (attha-gata, como o predizia o nome que lhe deram, Siddhartha), puro (suddho), imutável (anejo), sem desejo (Sn. 478; cf. M. I, 386, buddhassa... āhuneyyassa yakhassa); "Tal é a pureza do Daimon, êle que é o Descobrir da Verdade tem direito à oferenda"; êle é o Daimon āhuneyya " a quem se deve apresentar a oferenda do sacrifício (S. I, 32; M. I, 386; Sn. 478). Enquanto que tôdas as existências se mantêm pelo "alimento" (físico ou mental) (D. III, 211) e com êle se deliciam, pergunta-se "qual é então o nome dêste Daimon que não encontra prazer no alimento?" (S. I, 32; cf. Sn. 508). Isto lembra exatamente a pergunta: "Não me dirás quem é?" e a resposta de Sócrates: "Se te dissesse seu nome, tu não o conhecerias"; aliás na tradição hindu e em muitas outras "Quem?", é o nome mais apropriado do Deus que é o "Eu de tôdas as existências",


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que não veio de parte alguma, que jamais se tornou alguém. Êste "Eu de todos os sêres" é o Sol; "não o sol que todos podem ver, mas o Sol que poucos conhecem pelo Espírito" (arepassa, isto é, anupalitto). É essa uma das numerosas razões para assimilar Buda (brahmabhūta, também chamado "o Ôlho que está no mundo" e "cujo nome é verdade") a esta "Luz das luzes", êste "Sol dos homens".

O que nos ocupa no momento é a expressão "não contaminado". Explìcitamente ou implìcitamente, tanto nos textos búdicos ou pré-búdicos (onde deparamos ainda com o "Sol" "lôto único do céu") a alusão metafórica se refere à pureza do lôto que "não é molhado pela água" acima da qual flutua. Buda, igualmente "não é maculado pelos contactos humanos" (Sn. 456; cf. S. IV, 180); não maculado pelo mundo (A. III, 347) nem por tôdas as coisas do mundo (A. IV, 71). O que fica assim explícito, projeta uma luz sôbre a natureza do fim que Buda e outros Homens Perfeitos procuraram e atingiram. Imagina-se demasiadamente que a noção de um fim "além do bem e do mal" é de origem moderna. Ao contrário, ela se apresenta não sòmente nos textos hindus, mas também islâmicos e cristãos, faz parte da diferenciação normal entre a vida ativa e a contemplativa: a virtude é essencial para a primeira, dispositiva sòmente para a segunda, cuja perfeição é precisamente o fim último do homem, isto é, a contemplação beatífica da Verdade. É uma idéia que é repetida muitas vêzes nos textos budistas: aquilo de que o Homem Perfeito não é contaminado, não é sòmente o mal ou o vício, é também o bem e a virtude. Muitos textos o dizem em têrmos próprios: "não contaminado, seja pela virtude, seja pelo vício, o eu rejeitado, pois nenhuma ação é doravante necessária aqui" (Sn. 790); "aquêle que fugiu dos laços seja da virtude, seja do vício, que é sem mágoas, ao qual


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nenhuma poeira adere, aquêle que é puro, é a êle que chamo um verdadeiro brâmane" (Dh. 412), isto é, um Arahant. Ainda mais notável é a parábola da balsa: "Abandonai o bem e com mais razão ainda, o mal; aquêle que atingiu a outra margem não precisa de balsas" (M. I, 135). Temos uma analogia perfeita na frase de Santo Agostinho: "Que êle não mais se sirva da Lei como meio de conseguir quando conseguiu" (De spir. et lit. 16) e aquela de Mestre Eckhart: "Atingida a outra não preciso mais de nau"; o mesmo autor diz também "Olhai a alma divorciada do que quer que seja... não deixando mais traço nem de vício nem de virtude".

A "pureza" não se atinge pela fé, nem a audição, nem o conhecimento, nem a ética, nem a ação: mas ela não se atinge também sem elas (Sn. 839); em outros têrmos, a formação moral é absolutamente indispensável, mas em si ela não traz a perfeição.  Há regras de conduta estabelecidas para os chefes de famílias e outras para os religiosos: estas últimas, bem entendido, são mais severas, mas elas nada têm de excessivo: as torturas do corpo são severamente condenadas. Os religiosos que tinham cometido uma falta (é necessário compreender bem que alguns quiseram entrar na Ordem por razões indígnas) podiam ser citados e censurados pùblicamente diante da assembléia dos monges, e expulsos no caso de faltas graves. Ao contrário, os monges mendicantes não estavam então, mais do que hoje, aliás, ligados por laços inquebrantáveis; eram livres de regressar à vida familiar quando o quisessem; no máximo êles se expunham a que se lhes censurassem sua fraqueza.

A prática das virtudes morais pelo chefe de família ou o discípulo-mendicante, o conduz a renascer num céu mais ou menos elevado. O primeiro obtém méritos pela sua boa conduta e sobretudo pela sua generosidade; e a êste propósito deve-se notar que Buda exorta um chefe


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de família recentemente convertido, e tornado zelador leigo, a não abandonar seu antigo hábito de sustentar materialmente uma ordem rival de religiosos que são portanto heréticos aos olhos de um budista. O religioso-mendicante, que só possuía suas vestes, sua tigela de esmolas, seu cântaro e seu bastão, não podia, êle ser generoso de seus bens; mas podia ensinar aos outros, e não se lhe poderia oferecer mais digno presente que de lhes dar a Lei Eterna. Os laços de família não existiam mais para êle como obrigações que implicam deveres; era-lhe proibido ocupar-se de política, participar dos prazeres, das provas, das ocupações das pessoas que vivem no mundo. Seu dever era devolver o amor pelo ódio àquele que o insultasse em palavras ou por vias de fato, e praticar as "estadas de Brahma" (brahma vihāra), os "estados divinos" do Amor, da Piedade, da Ternura e da Imparcialidade (mettā, karmā, upekkhā). O primeiro dêstes estados consiste em fazer resplandecer voluntàriamente um amor benevolente para todos os sêres vivos sem excessão. "Com um coração de Amor, êle permanece irradiante uma quarta parte, depois um segundo, um terceiro, um quarto; e assim o vasto mundo inteiro acima, abaixo, de todos os lados e por tôda a parte, continua a irradiar do coração de Amor abundante, sem limites, sem máculas" e pensando: "Que todos sejam felizes!" (Sn. 143 sg). Aqui a palavra "todos" não designa sòmente os sêres humanos, mas todos os sêres do universo sem excessão. A Imparcialidade, ao contrário, é um estado subjetivo de paciência e de despreendimento, é considerar as coisas agradáveis ou desagradáveis que vos acontecem, no mesmo espírito que vós olharíeis representar uma peça: vós assistis às aventuras do herói sem nela participar. A "libertação do coração" que daí resulta é favorável a um renascimento último nos mundos de Brahma e à familiaridade, senão identidade de Brahmā, considerando


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que a disposição do religioso que nêle desenvolve êstes estados de espírito sem egoísmo é a mesma que a de Brahmā. Poder-se-á observar que até aqui é um método exclusivamente ético, que pressupõe a virtude da inocência (da não-nocividade) (ahimsb, M. I, 44; S. I, 163; Sn. 309, 368, 515, etc.). É uma palavra que se tornou muito familiar a nossos contemporâneos, sendo o princípio da "não violência" preconizada por Gandhi como regra de conduta em tôda a circunstância: "Depõe teu gládio". A educação da vontade precede lògicamente à do intelecto.

Mas êstes métodos éticos que comportam ainda a noção do eu por oposição a outrem são apenas uma parte do "caminhar com Deus" (brahma-cariyam) ou "caminhar com a Lei" (dhamma-cariyam); não é êste o último ponto do caminho; muito resta ainda a fazer. É-nos dito que, como os religiosos que não são ainda "completamente libertos" e que se gabam de terem chegado ao fim de sua tarefa (A. V, 336; cf. M. I, 477) os deuses são freqüentemente inclinadoa a crer, bem falsamente, que sua situação é imutável, eterna, e que nada mais têm a realizar (A. IV, 336, 355, 378; S. I, 142). E, com efeito, vemos Buda censurar Sāriputta de ter indicado, a um brâmane que o interrogava, o modo de ter acesso aos mundos inferiores de Brahma sòmente, quando resta ainda tanto caminho a percorrer (M. II, 195-196). É constantemente admitido que aquêles que ainda não obtiveram seu "expirar" total (sansc. parimi vāna) neste mundo, se todavia êles estão bastante adiantados para "não mais regressar", têm a faculdade de atingir sua perfeição e assegurar-lhes sua evasão final seja qual fôr sua situação no outro mundo: é esta a razão pela qual Buda é o mestre não sòmente dos homens, mas também dos deuses.


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Qual é pois a tarefa que resta a cumprir aos religiosos e àqueles que atingiram uma vida (susceptível de durar idades) nos céus do Empíreo, sem pertencer ainda ao número de Arahants cuja "tarefa foi cumprida"? Não se trata de obter um estado superior pelas boas obras; o fruto das obras já foi adquirido: trata-se daí por diante ùnicamente da vida de contemplação (jhāna). O jhāna (sansc. dhyana, chin, tch'an, jap. zen) corresponde quase exatamente ao segundo têrmo da série "Consideração, Contemplação e Êxtase" na ascese ocidental; a samādhi, literalmente "com-posição" ou "sintese", como a dos raios no centro do círculo*, corresponde ao Êxtase e pressupõe a consumação do jhāna em tôdas as etapas. O jhāna, é a realização ativa e desejada de estados de ser diversos daquêle no qual contemplativo se encontra normalmente; a fôrça do têrmo é totalmente desconhecida pelos sábios que a denominam uma "mediação" ou, o que é ainda mais falso, um "devaneio". A contemplação é uma disciplina mental das mais árduas, que exige uma longa prática: não é uma variedade de sonho no estado de vigília; "nada aí lembra o transe, mas muito mais uma vitalidade exaltada" (P. T. S. Pāli Dictionary, s. v. jhāna). O adepto pode passar na hierarquia dos estados de um a outro, à sua vontade, e a nela tornar a descer (D. II, 71, 156); êste domínio absoluto dos estados contemplativos distingue claramente o yoga hindu de tôda a experiência mística que é apenas passiva e adventícia. Os estados contemplativos constituem uma espécie de escala que se pode ascender de estados de ser ou "níveis" inferiores, aos

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* No simbolismo arquitetural, ao qual se refere freqüentemente, a concentração dos poderes psíquicos em sua origem, empresta, freqüentemente, a imagem dos arqueiros que se reunem no acabamento do zimbório, e êste acabamento (arrendado) é a "porta do sol" pela qual se escapa de um mundo condicionado qualquer, que representa o espaço interior (a "gruta" de Platão) do edifício.


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superiores; mas a finalidade última da libertação se encontra ainda além.

Os jhānas são em número de quatro, acessíveis tanto aos leigos quanto aos monges; com os quatro arūpa-jhānas (estados "sem forma", completamente imateriais), é uma série de oito etapas da libertação (vimokkha, D. II, 69-71, 112, 156, e passim). No primeiro jhāna, é preciso dar ao espírito "uma única direção" e voltar a atenção sôbre qualquer suporte da contemplação que seja de uma natureza apropriada ao temperamento e à constituição do discípulo; é geralmente seu mestre que o escolhe. No segundo, o praticante vê ainda a forma exterior e êle, mas não mais têm consciência da sua própria; é uma experiência extática. No terceiro, o êxtase se desvanece, e só resta uma consciência da infinidade do poder de discriminação (viññāna). No sexto domina a sensação que "nada existe" (n'atthi kimci). No sétimo, não há mais discriminação, e é um estado onde não há nem consciência nem inconsciência (saññā).  No oitavo, há a interrupção de tôda a consciência ou sensação (D. II, 69-71, 112, 156). Quanto um religioso se tornou mestre dêstes oito graus da libertação em sua ordem ascendente, em sua ordem descendente, e numa e outra consecutivamente, de tal sorte que se pode submergir em qualquer um dêstes estados ou dêles sair à vontade e durante o tempo que desejar; quando pela extirpação dos fluxos  êle penetra nesta liberdade da vontade (ceto vimutti) e nesta liberdade intelectual (paññā — vimutti) da qual êle tem agora um conhecimento direto e uma prática efetiva desde agora, então se diz dêste religioso que êle é "livre nos dois sentidos", e não existe liberdade, nos dois sentidos, diversa nem mais alta que aquela (D. II, 71; cf. Sn. 734-753).

Mas é necessário compreender bem claramente que a obtenção dêste completo domínio, permitindo percorrer


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a hierarquia dos estados de existência ou céus superpostos, não é um fim em si, mas um meio de obter a libertação de todos os "estados"; pois todos são contingentes, todos têm uma origem e um fim; por pouco que se conheça sua natureza verdadeira, seus prazeres e suas dores, e o meio de dêles se evadir (nissaranam), ninguém com êles se deliciará nem nêle desejará permanecer para sempre, fôsse mesmo no estado mais alto (D. II, 79). Seja qual for nossa situação na hierarquia dos mundos, sempre restar-nos-á uma outra margem a atingir; é sòmente para o ser completamente liberto que nada mais resta a cumprir. Do ponto de vista do summum bonum; alcançar um dos céus não vale muito mais que estar ainda neste mundo; a grande obra não está ainda realizada. É para explicar isso que Buda expõe a doutrina do Caminho do meio: majjhena tathagato dhammam deseti.

Esta doutrina importantíssima, que é platônica, aristotélica e escolástica, tanto como bramânica e budista, tem tantas aplicações quantas alternativas possui; se se escolhe entre êste mundo e qualquer outro (que se opõe como as "orlas" de um mar) êste é apenas um caso particular.

O verdadeiro "habitante do fim do mundo (lok'anta-gū) não está ligado à existência neste mundo nem a nenhum outro, por mais alto que seja; pois todos os sêres (sattā), os deuses como os homens, estão presos nas correntes da morte" (S. I, 97, 105). Há sempre dois extremos (antā); é perante o extremista (anta-g-gahika) que dá um valor absoluto a um ou outro, que Buda propõe o que é mediano; o verdadeiro "Caminhar com Deus" (brahmacariya) é um caminho do meio. Desde o tempo em que era Bodhisatta, após ter sido criado na abundância, depois de ter mortificado a carne quase até morrer, o Mestre compreendera que nem um nem outro dêstes extremos o conduziria ao conhecimento


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que procurava e que obteve seguindo o Caminho do Meio. Da mesma maneira, a Pureza não se obtém pela virtude, como também sem ela (Sn. 839); trata-se de ser puro não sòmente do vício mas também da virtude. O mesmo se dá com tôdas as "teorias" (ditthi), tôdas as afirmações e negações: é (é o êrro eternalista) e não é (é o êrro aniquilacionista) não são nem uma nem outra das definições exatas da realidade última (S. II, 19-20, 117): como para Bvethins, "a fé é uma média entre heresias contrárias". Isto não quer dizer que o Caminho do Meio tenha uma dimensão; se se quisesse localizá-lo no espaço, o fim não estaria aqui, nem além, nem entre os dois (Ud. 8) e não é "contando seus passos" mas em si mesmo que se chega ao fim do mundo (S. I, 61-62; A. II, 48-49; S. IV, 94). O tempo é encarado da mesma maneira, e é talvez êste o lado mais interessante do princípio atomista. A existência (isto é, a origem e a dissolução) de tôdas as coisas, é momentânea (khamika, Vis. I, 230, 239; Dpvs. I 16) como ela o era para Heráclito (cf. Plutarco, Moralia, 392 a. C.). Êste in stant e (khana) no qual tôdas as coisas surgem, existem e cessam de ser simultâneamente, é êste presente sem duração que separa o passado do futuro e dá a ambos uma significação. O tempo, no seio do qual sobrevém a mutação, não é nada mais que a sucessão ou fluxo de instantes análogos, cada um dos quais sendo em si fora do tempo* é nosso Caminho do Meio (A. IV, 137). A vida, tal como a conhecemos empìricamente, é o campo das ações transitórias, e são

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* É verdade que os "homens têm o sentimento de que o que não pode ser formulado em função do tempo não pode ter significação", mas "a noção de um ser imutável e estático deve-se entender mais como indicando um processo de uma vivacidade tão intensa que êle compreende ao mesmo tempo o princípio e o fim" (W. H. Sheldon, The Modern Schoolman, XXI 133). "Mais a vida do eu se identifica com a vida do não-eu (isto é, o Eu), mais se vive intensamente (Abd — el — Hādi no Véu de Isis, jan. 1934).


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elas, precisamente, das quais herdamos as conseqüencias. Por outro lado, as atividades imanentes, permanecendo confinadas no agente, não envolvem êste nos acontecimentos exteriores, e, pela mesma razão, permanecem inacessíveis à observação. Várias expressões budistas (por ex. thit'ato [S. III, 55; Sn. 519, cf. 920]) que se opõem ao caráter transitório aniccam de tudo o que é não-Ipseidade, implicam a imobilidade do Eu liberto. Daí resulta que a vida transcendente, supralógica, do Eu liberto, está contida no Eu. Os instantes tomados em si mesmos são apenas um só; sua sucessão aparente é convencional.

O "instante" sem duração, conseqüentemente, é nossa mais bela ocasião: — "é hoje o dia da salvação" — e vemos Buda dirigir elogios aos religiosos que "aproveitaram seu instante", e censurar os que o deixaram escapar (S. IV, 126; Sn. 333). Os instantes, de fato, não escapam; mas quem consegue segurar um, escapa de uma só vêz à sua sucessão; para o Arahant que "expirou", o Tempo não mais existe. Seja qual fôr o caso, é pelo princípio de causalidade que Buda ensina o Caminho do Meio: sejam quais forem, os dois extremos, é o desejo, literalmente a "sêde" (tanhā) que "semeia" o ser para um porvir renovado; é sòmente pensando no Meio que se evita ser contaminado por um extremo ou por outro (A. III, 399-401; Sn. 1042). Platão, igualmente, diz que é segurando bem o fio de ouro da Lei comum que o boneco humano evitará os puxões contrários e desordenados que nos puxam para cá e para lá, na direção das boas ou más ações, determinadas pelos nossos desejos (Das Leis, 644).

Não é sem razão que o religioso é tratado de operário (samana, literalmente, "aquêle que se esforça", o exato equivalente semântico de "asceta"), êle não conhecerá repouso antes de se tornar aquêle que "fez


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o que tinha a fazer" (katakaraniyo). É necessário que seja um homem senhor de sua vontade e de seu pensamento, não seu joguete. Aquêle que Buda louva como "iluminador" da floresta onde vive na solidão, é o religioso que, regressando de sua viagem, de sua mendicidade, retorna ao seu assento de meditação, resolvido a não se levantar antes de se ter libertado dos fluxos. Para obter o que não foi ainda atingido, para verificar o que não foi ainda verificado, o religioso que abandonou o mundo por pura fé, que é ainda um discípulo, deve dar prova de virilidade, de heroísmo (viriyam) e tomar a mesma resolução do próprio Bodhisatta. "Possa eu só conservar a pele, os tendões e os ossos, enquanto minha carne e meu sangue secarem, em vez de me conceder um descanso na prática da virilidade antes de ter obtido o que se pode obter  pela paciência humana, a virilidade e o progresso perseverante" (S. II, 28; M. I, 481; A. I, 50; J. I, 70). "Eu me tornarei diferente da substância que constitui um mundo, eu extirparei a noção do "eu" e do "meu", eu terei o domínio perfeito da gnose que não se comunica, eu verei claramente a causa e origem causal de tôdas as coisas": tais são as intenções do religioso.

Como vimos, o desígnio original e fundamental (attha) do Bodhisatta era obter a vitória sôbre a morte, e com efeito êle venceu a morte durante a noite do Grande Despertar; em seguida, ensinando a Lei Eterna, "êle abriu as portas da imortalidade" a outros. Podemos pôr à prova a eficácia do "Caminhar com Brahma" (que o religioso realiza de conformidade com seu ensinamento) perguntando-nos como o Arahant considera a morte de outro ou aguarda a sua própria. No que concerne à morte de outro, faz parte de sua disciplina estar "atento à morte", refletir no fato de que todos os sêres sem excessão, mesmo os deuses do mundo de Brahma, são, no


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fim de contas, mortais; não perdendo nunca de vista esta idéia, o religioso permanece impassível mesmo diante da morte de Buda, pois sabe que a corrupção e a dissolução são inerentes a todos os compostos: sòmente os noviços e os deuses inferiores choram e se lamentam quando "o Ôlho do Mundo" desaparece. A Índia repetia há muito tempo que a imortalidade do corpo é coisa impossível; portanto o Arahant sabe muito bem que sua hora virá. O homem mediano, ignorante, "se lamenta, esmorece, chora e geme" quando o fim se aproxima; não o discípulo ariano que extinguiu os fogos do eu; sabe que a morte é o fim inelutável de tôdos os sêres que nasceram; é para êle um axioma, e espera a morte perguntando-se sòmente "como fazer o melhor uso de minha fôrça no acontecimento que se aproxima?" (A. III, 56). Estando já morto para tudo o que é suscetível de morrer, espera com perfeita calma a dissolução do veículo temporal; pode dizer: "Não desejo a vida e não estou impaciente para morrer. Espero minha hora como um servidor espera seus salários; despojar-me-ei de meu corpo enfim, presciente, refletido" (Th. I, 606, 1002). Mesmo se o discípulo ariano — seja êle religioso ou ainda chefe de família — não terminou de fazer tudo o que tinha a fazer, tem ao menos a segurança que, voltando à existência alhures, segundo seus méritos, ser-lhe-á possível, também lá, trabalhar ainda no seu aperfeiçoamento. As palavras "Ó tumba, onde está tua vitória, ó morte, onde está teu aguilhão?", poderiam ter saído dos lábios de Buda ou de qualquer verdadeiro budista. Para êle, não mais porvir, não mais sofrimento; se fica ainda a sofrer, não poderia ser por muito tempo, pois já está adiantado na longa estrada que leva ao Nirvâna, e "em verdade, êle em breve atingirá o seu término".