sexta-feira, 14 de junho de 2019

Giovanni Reale - Natureza e Igualdade

Platão, diante de homens de cidades e condições diferentes, faz Hípias dizer o seguinte:

"Homens aqui presentes, eu vos considero consanguíneos, parentes e concidadãos por natureza, não por lei: de fato, o semelhante é por natureza parente do semelhante, enquanto a lei, que é tirana dos homens, amiúde força muitas coisas contra a natureza."

É claro que aqui não só são claramente distintos, mas radicalmente contrapostos, o plano da physis ou da natureza e o plano do nomos ou da lei. A natureza é apresentada como o que une os homens (o semelhante com o semelhante); a lei, ao invés, é apresentada como o que divide, forçando a natureza e, portanto, indo contra ela. A natureza é assim reconhecida como a única que pode constituir a verdadeira base do agir humano, enquanto a lei é denunciada como "tirana dos homens" e, portanto, é radicalmente desvalorizada, pelo menos quando e à medida que se opõe à natureza. Nasce assim a distinção entre um direito natural (lei de natureza) e um direito positivo (lei posta pelos homens); nasce a convicção de que, pelas razões acima vistas, só o primeiro é válido e eterno, enquanto o segundo é contingente e, no fundo, não-válido. E assim são lançadas as premissas que levarão a uma total dessacralização das leis humanas, que serão consideradas fruto de pura convenção e de arbítrio, e, portanto, frutos indignos do respeito do qual sempre estiveram circundadas.

Mas Hípias tira desta distinção mais consequências positivas que negativas: posto que a natureza dos homens é igual (pelo menos a natureza dos sábios aos quais ele se dirige no contexto do seu discurso), não têm sentido as distinções que dividem os cidadãos de uma cidade dos de outra, nem as distinções que no interior das cidades possam ulteriormente dividir os cidadãos: nascia assim um ideal cosmopolita e igualitário, que para a grecidade era não só novíssimo, mas revolucionário.

[...]

Comparadas às concepções de Hípias, são também mais radicais as concepções igualitárias e cosmopolitas do homem propostas por Antifonte.

"[...] não conhecemos nem veneramos os que vivem longe. Nisto, na verdade, tornamo-nos, como os bárbaros, uns com relação aos outros, dado que, por natureza, em tudo todos fomos igualmente feitos para ser quer bárbaros quer gregos."

O iluminismo sofístico dissolveu aqui não só os velhos preconceitos de casta da aristocracia e o tradicional fechamento da polis, mas também o mais radical preconceito, comum a todos os gregos, quanto à própria superioridade sobre os outros povos: qualquer cidade é igual à outra, qualquer classe social é igual à outra, qualquer povo é igual a outro, porque todo homem é por natureza igual ao outro.

Mas que é esta natureza comum a todos os homens? Em que consiste exatamente?

Os fragmentos que nos chegaram esclarecem que Antifonte entende por natureza a natureza sensível: natureza pela qual o bem é o útil e o prazer, o mal é o prejudicial e o doloroso, é a natureza que é a espontaneidade e liberdade instintiva. E à luz deste conceito de natureza, a lei é sempre vista — nem podia ser de outro modo — como não natural, porque constringe a sacrifícios e, portanto, a dores, refreia e põe obstáculos à espontaneidade.

[...]

Com base nessas premissas, a igualdade dos homens é vista exclusivamente como igualdade de estrutura e necessidade sensíveis:

"É possível ver que as coisas pertinentes ao âmbito da natureza são necessárias a todos os homens e por todos buscadas por meio das mesmas faculdades; e nessas mesmas coisas nenhum de nós se distingue nem como bárbaro nem como grego. Todos respiramos o ar com a boca e as narinas; rimos com alegria na alma ou choramos sofrendo, e com o ouvido recebemos os sons e graças à luz vemos com a visão, e com as mãos operamos e com os pés caminhamos [...]."

E isto é extremamente interessante: se restringimos a natureza humana à pura dimensão sensível, iludimo-nos em poder cancelar toda diversidade entre os homens, enquanto na realidade lançamos as premissas para fundar outros tipos de diversidade e outros tipos de distinções, sob certo aspecto ainda mais graves. E assim se explica que, do mesmo princípio da natureza-sensibilidade, alguns logo tenham podido deduzir conclusões opostas às que foram deduzidas por Antifonte: a natureza demonstra que existem homens mais fortes e homens mais fracos, e que, portanto, os homens são diferentes e a quem é mais forte é natural que domine sobre os fracos e lhes imponha a sua vontade. E explica-se também que, sobre esta base, a lei, entendida como contrária à natureza, devesse ser destituída de todo fundamento objetivo e, portanto, proclamada injustificável. Conclusões estas que, logo veremos, serão deduzidas pelos sofistas políticos.

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Trasímaco da Calcedônia chegou a afirmar que o "justo não é mais que a vantagem do mais forte"; do que ele deduziu, quase certamente, como nos diz Platão no primeiro livro da República, que a justiça é um bem para o poderoso e um mal para quem está submetido ao poderoso, que o homem justo tem sempre desvantagem e o injusto vantagem.

E o Cálicles do Górgias platônico (que, se não é um personagem real, ou uma máscara de um personagem real, é, contudo, pefeita expressão desta corrente) precisa:

"Parece-me que a própria natureza mostra ser justo que o melhor [= mais forte] tenha mais do que o pior [= mais fraco] e que o mais poderoso tenha mais do que o menos poderoso."

Com efeito, os animais mais fortes esmagam os mais fracos, os homens mais fortes fazem o mesmo com os mais fracos, e assim os Estados mais fortes com relação aos mais fracos; a lei é sempre contra a natureza (esta natureza) e foi feita pelos mais fracos para defender-se dos mais fortes e, neste sentido, é totalmente negativa. Por isso Cálicles chega a exaltar o homem mais forte, o super-homem, que infringe as leis e submete os mais fracos:

"Mas se nascesse um homem dotado de uma forte natureza, suficientemente forte, então arrancaria de si todos os freios da lei, os quebraria e se libertaria deles, pisaria as nossas instituições, os nossos encantamentos, os nossos sortilégios e as nossas leis, que são todas contra a natureza: e, rebelando-se assim, o nosso escravo resultaria o nosso senhor, e desse modo refulgiria o justo segundo a natureza."

E a vida "justa segundo a natureza" comportará também o favorecimento de todos os instintos, porque estes são segundo a natureza; comportará deixar-lhes livre curso, satisfazê-los depois de tê-los estimulado, conceder-lhes absolutamente tudo: e comportará fazer tudo isso em prejuízo dos mais fracos, e, antes, explorando para tais fins os mais fracos, justamente porque a natureza os fez diferentes e os pôs à disposição dos mais fortes.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Collin Cleary - Como Invocar os Deuses



Paremos e examinemos em quais momentos ─ em quais ocasiões temos o sentimento da realidade do que é diferente. Os melhores exemplos são quando as coisas não funcionam ou quando as coisas frustram nossas expectativas de uma maneira ou de outra. É assim que Heidegger aborda a questão. Nós entramos no nosso carro para começar um dia cheio, fazer negócios e compras ─ e nós descobrimos que ele não funciona. Minha experiência de tais situações é que há, de início, um sentimento de quase "irrealidade". Nós temos vontade de dizer (e dizemos frequentemente): "Eu não acredito nisso". E de repente o ser dessa concatenação de metal e de plástico nos confronta em toda sua artificialidade frustrante. Uma situação ainda pior ocorre quando o corpo fica doente, quando de repente ele não funciona como nós esperamos. O corpo parece, em seguida, ser um simples outro. Estas duas situações, e todas as outras parecidas, são ocasiões onde uma coisa que foi dada como certa parece de repente se afirmar sozinha. O que foi tomado como um simples instrumento, como uma extensão da vontade humana, torna-se um ser em si. O resultado é de frustração, de assombro, de fúria, e de algo como o respeito.

Mas, em termos religiosos, o que queremos não é sermos intimidados por isto ou aquilo, mas, ao invés, de finalmente encontrar o próprio mundo respeitável em sua estranheza. É necessário que o mundo "pare de funcionar", como um carro, para que nós o conheçamos? Com certeza, a resposta é que isso é impossível. O que acontece com muita frequência é que nós falhamos, e que o mundo nos aparece como algo que poderia ser perdido por nós para sempre. Eu tenho em mente situações onde os seres humanos têm um contato com a morte ou com a loucura, onde se encontram em face de sua própria mortalidade ou fragilidade. E eu já pensei frequentemente que certos homens se arriscam deliberadamente ─ precipitam deliberadamente um contato com a morte ─ simplesmente para poderem experimentar um sentimento renovado de respeito ou de maravilhamento em face da existência. Tais homens desenvolvem frequentemente um "sentimento" não somente da bizarra estranheza do mundo, mas também uma intuição "mística" de algo como a divina providência agindo por trás das cortinas.

Felizmente, não temos necessidade de saltar de um avião ou de subir uma montanha para alcançar a abertura do gênero que me interessa. Basta-nos colocar uma única questão e nela refletir: por que então há seres ao invés de nada? Aqui novamente, eu parto de Heidegger, mas para ir numa direção que Heidegger não explorou verdadeiramente.

Na Índia, existe um exercício de meditação muito simples frequentemente realizado pelos buscadores de sabedoria. Ele consiste em tomar não importa que objeto, banal que seja ─ pode ser uma pedra, ou uma ponta de cigarro ─, colocá-lo no solo, e traçar um círculo em volta dele na poeira. O efeito é de tomar um objeto que normalmente é tomado por óbvio, que é na vida a figura de um simples instrumento ou algo mal notado, e de nos fazer conscientes de seu ser. Digamos que seja uma ponta de cigarro. Quando nós traçamos um círculo em volta, ele se torna um objeto de meditação apropriado. No que nós meditamos não é sua natureza grosseira de ponta de cigarro, mas no fato de seu ser ─ o próprio fato de que existe. Essa é uma maneira de se habituar à maravilha do ser.

Colocar a questão "por que existem os seres ao invés do nada?", é traçar um círculo em torno do que é, como tal. É uma maneira pela qual, numa piscadela, o mundo inteiro no qual nos encontramos pode se tornar um objeto de meditação ─ e de respeito e de maravilhamento.

Quando encontramos o ser-em-si como um milagre, é natural (e inevitável) que nos perguntemos de onde ele vem. A versão infantil dessa questão é: "Quem o fez?". A versão mais sofisticada não se interroga sobre a existência física do universo considerado como uma totalidade, mas na fonte da abundância que se nos apresenta no universo. Nós nos maravilhamos com a inesgotável riqueza do universo, a infinita multiplicidade de tipos de coisas, e variações desses tipos, e a infinita complexidade de cada coisa, banal que seja. Nós nos maravilhamos com a contínua renovação dos seres ─ o contínuo curso de tipos que dão a luz a outros semelhantes, e a faculdade dos seres de se regenerar e de se curar. É natural se maravilhar com a fonte de tudo isso. É a "fonte do ser" que essa questão fundamental "por que há o ser ao invés do nada?" tem como tema.

Pense um momento na origem de uma fonte. Onde termina a fonte e onde sua origem começa (ou vice-versa)? Em sua origem, a fonte desaparece no solo. A origem é o buraco no solo? Certamente não. A origem é uma quantidade de água distinta da fonte? Novamente, certamente não. A fonte e sua origem se misturam. A origem da corrente é invisível. Mas nós entendemos que a fonte flui à partir dessa origem invisível. É exatamente assim que os Gregos conceberam a physis, como surgindo continuamente de uma origem última ─ arché, em grego. Essa compreensão é o sentido dos símbolos antigos tais como o chifre ou o caldeirão de abundância, e o Santo Graal. O arché é o fundamento infundado de toda abundância.

O problema fundamental com os seres humanos é o que os fazem querer ser eles mesmos o arché, a fonte de todas as coisas. Todas as nossas tentativas de compreender algo que seja, implicam em apreender como o ser da coisa segue de certos princípios que nós descobrimos. Nossas tentativas de compreender são tentativas de compreender de baixo. Nós nos esforçamos, de fato, para remover as bases de um objeto e de transformar o fundamento com o fim de ver como o ser do objeto decorre de nossas idéias. Quando o cientista, por exemplo, compreende os fenômenos, ele sublinha que os fenômenos decorrem dos princípios que ele estabelece. Mas quando voltamos nosso espírito ao arché último ─ do qual nós mesmos viemos ─, a despeito de todas as nossas afirmações de ter conquistado a natureza, o ser se manifesta como um dado misterioso e miraculoso. O arché é o fundo no qual a figura do ser-em-si se manifesta.

Entretanto, como indica o exemplo do círculo em torno da ponta de cigarro, podemos nos maravilhar com um único ser, assim como com o ser-em-si. E quando nos tornamos, com essa atitude de maravilhamento, aos fenômenos individuais da existência, uma outra questão fundamental surge. Nós poderíamos nos perguntar sobre uma coisa qualquer, por que essa coisa particular deve ser e é da maneira que é? Tomemos o fenômeno do sexo. Quando o espírito tenta pensar no sexo de uma maneira desapaixonada, ele acaba parecendo uma atividade bastante absurda e grotesca. Por que isso deve ser tão fascinante? Por que isso deveria absorver tanto do nosso tempo e ser tão importante para nós? No entanto, é. E quanto mais tentamos pensá-lo dessa maneira, mais tememos acabar confundindo tudo! O resultado é que, intimidados pela pura e inexplicável realidade do sexo, nós continuamos a nos maravilhar e a procurá-lo como antes. De fato, talvez este seja o único domínio, na vida de muitas pessoas, onde o milagre ainda acontece.

Mas todo o resto pode ser abordado com esta atitude de admiração. Um belo animal é também um objeto de admiração. Por que essa coisa particular deve ser, e é da maneira que é? O fato do vento, e da chuva, do sol e das estrelas, tudo isso pode causar admiração, e suscitar esse questionamento. E não há necessidade de que seja uma entidade física ou perceptível: pode ser o fato do nascimento, ou da morte, ou dos ciclos naturais, etc.

Agora, quando colocamos essa questão, pode parecer que perguntamos por um tipo de explicação oficial e científica, mas esse não é o caso. Nenhum curso na seleção natural poderá suprimir minha admiração diante do ser do meu gato ─ meu maravilhamento que uma tal coisa seja, e seja da maneira que é. Eu não tenho nenhuma querela com a explicação científica. Mas a explicação científica não pode suprimir essa admiração última e metafísica diante da pura existência das coisas. Eu estou perfeitamente pronto para aceitar a explicação dos cientistas da maneira em que os gatos apareceram ─ mas eu ainda olho para o meu gato e digo: "Não é incrível viver em um mundo onde coisas tão maravilhosas existem?"

Minha tese é esta: nossa admiração diante do ser das coisas particulares é a intuição de um deus, ou de um ser divino.

Estou dizendo que quando eu olho para o meu gato e conheço esse sentimento de admiração eu tenho a intuição de que meu gato é um deus? Sim e não. O maravilhamento que eu conheço vem de que coisas como essa podem simplesmente existir. Eu posso muito bem ter essa experiência contemplando o sol, a chuva, o oceano, as montanhas, etc. Minha admiração diante do ser dessas coisas é precisamente uma experiência de sua divindade. Assim existem os deuses do sol, do vento, da chuva, do oceano, das montanhas, e também dos gatos (os Egípcios compreenderam isso muito bem). Em verdade, todas as coisas irradiam da divindade; todas as coisas são Deus. E não há contradição entre essa afirmação e a afirmação de que há deuses. Essas são simplesmente duas maneiras diferentes de olhar para a mesma coisa. Na medida em que a divindade dos gatos irradiam através do meu gato, ele é o deus dos gatos.

Há um outro aspecto nessa experiência. Quando encontramos as coisas em seu ser, e nos admiramos que tais coisas possam existir, nossa percepção do tempo e do espaço muda. Quando uma coisa é vista com admiração, no sentido que eu descrevi, nós sabemos simultaneamente que seu ser se estende além do presente temporal. O objeto está, portanto, diante de nós, no presente, mas simultaneamente temos a intuição de um aspecto de eternidade na coisa. Quando me admiro que coisas como o meu gato possam simplesmente existir, do que eu me admiro é num sentido o "fato da existência dos gatos" no mundo. Como Alan Watts provavelmente disse, nós nos maravilhamos diante do fato de que há produção de gatos, de cães, de pessoas, de flores e de frutos neste mundo. É o aspecto da divindade que irradia através da coisa, vista de uma certa maneira.

Poderíamos pensar nos deuses como "regiões" do ser. Há tantos deuses quanto existem regiões do ser. Nossa consciência das regiões do ser não vem pela análise filosófica ou a construção de sistemas especulativos. Ela vem pela experiência e intuição. Há tantas regiões quanto existem experiências de admiração diante do fato que "coisas como X" possam existir. E existem regiões no interior de regiões. É assim que com um supremo bom senso os Indianos deixam as coisas vagas no que concerne ao número de seus deuses. Os textos hindus diferem. Alguns dizem que há 330 000 000 deuses. Um número tão grande não se destina a ser uma conta exata. Ele se destina a sugerir, de fato, a infinidade dos deuses, uma infinidade fundada no fato de que existem infinitas experiência possíveis de maravilhamento diante das coisas. Exatamente da mesma maneira, os anciãos autores chineses falam das "dez mil coisas", não para dar um número preciso, mas para sugerir a incompreensível imensidão da existência.

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