domingo, 15 de novembro de 2015

«[...]no domínio da símbólica não há um código geral de decifração, mas apenas códigos particulares que, também eles, exigem uma interpretação. Um símbolo não significa: evoca e focaliza, reúne e concentra, de forma analogicamente polivalente, uma multiplicidade de sentidos que não se reduzem a um único significado, nem apenas a alguns. Uma nota de música também não tem um sentido determinado e definitivo, embora não seja um sinal qualquer. Depende tão intimamente do seu contexto rítmico e sonoro como o símbolo depende do contexto mítico e ritual que lhe está associado.

Penetrar no mundo dos símbolos é tentar perceber as vibrações harmónicas e, de certa forma, adivinhar uma música do universo. Para isso não é necessário apenas intuição, mas também um sentido inato de analogia, um dom que pode ser desenvolvido pelo exercício, mas que não se adquire. Há um "ouvido simbólico", tal como há um "ouvido musical", que é parcialmente independente do grau de evolução cultural dos indivíduos. O "ouvido simbólico" do aborígene australiano, por exemplo, encontra-se muito mais desenvolvido que o do homem civilizado moderno.



René Alleau - A Ciência dos Símbolos, pág. 9

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Sobre os 4 elementos e os 4 temperamentos | Luiz Gonzaga de Carvalho Neto e Pedro Sette Câmara



Observando as notas dos corpos

Como os quatro elementos são derivados da noção de corpo, cabe-nos primeiramente definir “corpo”. Vamos considerar um objeto corpóreo e retirar dele algumas notas até sermos capazes de reconhecer suas notas essenciais e chegar à definição.

Observemos, então, a folha de papel em que está impressa este texto. Faça um conjunto de observações a respeito dela, mesmo que você não as escreva. Em vez de raciocinar, tente simplesmente prestar atenção. O que você está observando nesta folha de papel?

Podemos dizer: ela é branca, com letras impressas. Ela é feita de alguma coisa – papel, no caso. Ela é retangular. Ela é suave ao toque.

Agora vamos separar os dados essenciais dos acidentais, comparando a folha de papel com todos os corpos. Todos os corpos precisam ser brancos? Não. Precisam ter letras impressas? Também não. Todos os corpos têm cor? Não, porque no escuro eles não deixam de ser corpos. Estes são portanto acidentes.

Continuemos. Todos os corpos são feitos de alguma coisa? Sim, mas não necessariamente de papel. Aqui já começamos a acertar o alvo. Todos os corpos têm alguma substância. E agora: todos os corpos são retangulares? Não – mas todos os corpos têm alguma espécie de figura. Em vez de figura, podemos dizer: extensão limitada. Dá na mesma, mas aqui explicitamos a idéia de que todos os corpos têm alguma extensão, e que esta extensão não é ilimitada.

Por fim, todos os corpos são suaves ao toque? Não: tente pegar num ouriço para ver.

A definição de corpo

Podemos então definir corpo como substância de extensão limitada, o que equivale a dizer: substância com figura. Observamos que tudo o que existe corporeamente tem extensão, e a extensão precisa ser limitada em função da impenetrabilidade da matéria; se existisse um corpo de extensão ilimitada (nas três dimensões), não seria possível que nenhum outro corpo existisse, limitado ou ilimitado. Mesmo que supuséssemos a existência de um corpo ilimitado em uma ou duas de suas três dimensões, nunca observamos a existência de um corpo assim, nem jamais foi provada a necessidade de que ele exista.

Observamos ainda que todos os corpos podem sofrer mutações, mas que a própria permanência dos corpos no tempo pressupõe a existência de um substrato que não muda. Isto é, se alteramos o local, a quantidade ou a qualidade de um corpo, é preciso que um substrato tenha permanecido o mesmo, a fim de receber todas estas alterações. Se o substrato mudasse totalmente, seria outra coisa. Aqui voltamos ao ponto em que a matéria, ou substrato, pode ser vista como uma definição formal. O algodão é a matéria da camisa. Algum vegetal é a matéria do algodão, e assim sucessivamente até chegarmos ao ponto da matéria inqualificada. Para efeitos da presente análise, vamos nos concentrar na manifestação corpórea.

A partir desta definição, podemos examinar as quatro qualidades sensíveis, que são na verdade dois pares de qualidades complementares: umidade x secura e calor x frieza. Decorrem da definição de corpo e podem portanto ser observadas em qualquer corpo, em graus diferentes, sem que exista um absoluto: nenhum corpo é tão úmido que não tenha nenhuma secura, e vice-versa, o mesmo valendo para as demais qualidades. Umidade e secura estão relacionadas à capacidade do corpo de dar-se um limite próprio; e calor e frieza à divisibilidade de sua figura.

1. O limite da extensão

O limite da extensão é uma característica dos corpos que admite duas distinções, porque existem duas espécies diferentes de limite. Alguns corpos têm o limite determinado por si mesmos; outros têm o limite determinado por um agente externo. Um copo tem em si mesmo o limite da sua extensão, sua figura; a água que está no copo assume a figura do copo. Se fosse colocada numa piscina, teria a forma da piscina; se fosse colocada nas mãos em concha, teria a figura de mãos em concha.

1.1. Umidade
É a impossibilidade de um corpo de dar limite próprio à sua figura, que passa a ser determinada por outro. O ar de uma sala, por exemplo, só é determinado pela figura da sala: paredes e teto. Trata-se de uma mudança de espécie para o limite da extensão do corpo, mas não para o próprio corpo.

1.2. Secura
É a capacidade de um corpo de dar limite próprio à sua figura. A sala onde está o ar mantém a sua figura por si mesma, ao contrário do ar: ela é seca.

2. Divisibilidade da extensão

A própria noção de extensão supõe a noção de divisibilidade. Porém, alguns corpos são naturalmente inclinados a manter-se individidos enquanto outros tendem a dividir-se.

2.1. Calor
É a qualidade pela qual um corpo tende a separar suas partes, ou dividir sua figura. Basta ver que tudo que recebe calor se desfaz de algum modo: a água evapora, a comida cozinha, o papel queima e se faz em mil pedaços.

2.2. Frieza
É a qualidade pela qual um corpo tende a manter as próprias partes juntas, ou não dividir sua figura. Se ao receber calor as coisas se desfazem, enquanto estão frias tendem a permanecer as mesmas: não é à toa que o congelamento é uma maneira de preservação, tanto para a comida no congelador como para os cadáveres de animais antigos que podem ser encontrados em geleiras.

Um exemplo

Vamos descrever um corpo qualquer segundo as quatro qualidades, para que elas fiquem mais claras. Podemos tomar uma camisa. A camisa, a menos que esteja velha e acabada, mantém-se inteira – suas partes continuam se atraindo, demonstrando frieza. Como a camisa também não assume definitivamente a figura de uma tartaruga nem de uma calça, mas continua com figura de camisa, demonstra secura. Mas a camisa se deforma um pouco: podemos dobrá-la, por exemplo; e também, quando a vestimos, especialmente se estivermos com aqueles quilinhos a mais, ela pode ficar um pouco esticada: eis aí o componente de umidade. A qualidade calor pode ser um pouco difícil de perceber, mas basta dar-se conta de que tudo neste mundo tende a se desfazer, e um dia até a melhor das camisas estará esburacada, ou seja, suas partes terão se repelido.

Como vemos aqui, pode ser que um objeto tenha uma qualidade em grau muito pequeno. Onde está, por exemplo, a umidade do diamante? Está na sua possibilidade de ser moldado por uma broca também feita de diamante.

Os quatro elementos

Cada um dos elementos é composto da união de duas qualidades sensíveis, sendo uma predominante. São chamados ar, água, fogo e terra porque aqueles corpos que na linguagem comum recebem os mesmos nomes representam de maneira exemplar a união destas qualidades. Todos os corpos, porém – inclusive o corpo ar, o corpo água, o corpo fogo e o corpo terra – são compostos dos quatro elementos.

Ar
É a reunião de umidade e calor. O corpo ar, exemplo natural, não tem um limite próprio, assumindo totalmente a figura de seu continente. Se está numa sala, tem a figura da sala; se está no pulmão, tem a figura do pulmão. É por isso o mais úmido dos elementos e a umidade é sua qualidade predominante. Quanto ao calor, vemos que o corpo ar deixa suas partes com muita facilidade: só é possível conter o ar através de força, e com o uso de instrumentos específicos para este fim – compressores.

Água
É a reunião de umidade e frieza. O corpo água, exemplo natural, praticamente não tem um limite próprio – só a sua superfície. A água tem sua figura determinada pelo recipiente que a contém, mas a sua superfície torna-se espontaneamente plana; por isso, o ar é mais úmido do que a água. A água também tende a permanecer com as partes unidas; vemos que, se colocarmos duas gotas de água lado a lado, uma será atraída pela outra e logo teremos uma só gota. A água também desce toda para um lugar só; sua qualidade predominante é a frieza.


Fogo
É a reunião de secura e calor. Vemos que o corpo fogo mantém-se inteiro na figura da labareda – por isso é seco. O fogo se extingue: suas partes se separaram, e as partes daquilo que entrou em contato com o fogo, adquirindo calor, também se separaram. Sua qualidade predominante é o calor.

Terra
É a reunião de secura e frieza. Assim como o ar, é um elemento que não sugere tensão (aliás, ar e terra se parecem com o par movimento e repouso, isto é, o movimento espontâneo e livre, e o repouso espontâneo e livre), como se vê no próprio corpo terra: nunca muda de figura, nem tem as partes separadas, até que outro venha e a altere. Sua qualidade predominante é a secura.

Os quatro temperamentos

Dos quatro elementos a medicina antiga derivou quatro humores básicos, e deles quatro temperamentos. Vamos considerar rapidamente cada um deles, pois conhecimento do temperamento é fundamental para a astrologia natal; para tanto, levemos em conta a divisão proposta por John Frawley nos quatro tipos representativos dos temperamentos, os guerreiros, os escribas, os fazendeiros e os escravos.

Colérico – Fogo
O colérico é o tipo do guerreiro. É o sujeito que tem muita energia para gastar. O fogo é quente. Por isso também o guerreiro destrói, e não constrói. Ele afasta as partes. O fogo é seco, isto é, o ideal é que o guerreiro mantenha a sua figura, senão ele morre e não vai mais guerrear. Além disto, o guerreiro normalmente defende algum ideal, o qual dá a medida da sua integridade em outro sentido.

Sangüíneo – Ar
O ar é quente, repele as partes; e úmido, não determina a sua figura. Este temperamento é portanto o mais adaptável em si. É possível dizer que, ao menos na literatura vulgar de Recursos Humanos, hoje em dia as corporações esperam de seus empregados que sejam mais sangüíneos. O colérico quer briga, ele se distingue pelo ardor. O melancólico quer continuar o mesmo; para mudar ele precisa incorporar a mudança a si. Já o sangüíneo se adapta às circunstâncias, mas para contorná-las, em vez de atacá-las frontalmente. Seu tipo é o do escriba bem no sentido das profissões contemporâneas associadas a escrever, como o jornalismo. O elemento ar também está associado a tudo o que é mental.

Melancólico – Terra
A terra é fria, ela mantém as suas partes reunidas, e também é seca, não muda de figura. Daí podemos ver que o sujeito melancólico é o que só faz o que quer, na hora que quer, e que pode até não ter muita vontade de fazer nada. A melancolia romântica, porém, é um excesso, uma patologia da melancolia. Se o colérico só faz o que quer, ele se move com mais facilidade à alguma ação do que o melancólico. Os melancólicos não se alteram muito. Daí que seu tipo seja o do fazendeiro: diante da terra, que tem seus ritmos próprios, não há muito o que fazer – ou ao menos não havia quando estes simbolismos foram elaborados, antes da engenharia genética etc. Assim, o fazendeiro é também o mais “conservador” de todos os tipos – o que não deve ser entendido no sentido político, é claro.

Fleumático – Água
A água é fria, atrai as partes, e úmida, não determina a sua figura. Por isso que o temperamento fleumático é o emocional, as emoções são aquáticas. Sentir uma emoção é estar sempre em si mesmo e ao mesmo tempo não determinar bem os limites deste si mesmo, porque você é afetado por algo que em princípio não é você, mas quando você é afetado aquilo passa a ser você de algum modo. John Frawley é um fleumático, e associa este tipo aos escravos porque estes viveriam em função de seu próprio corpo, dominados por instintos que teriam que ser controlados desde fora, isto é, pelos senhores.



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Luiz Gonzaga de Carvalho Neto e Pedro Sette Câmara - Introdução ao Simbolismo Astrológico

A criação da relva | Luiz Gonzaga de Carvalho Neto

«Se vocês olharem no Gênesis o relato da criação da relva, vocês vão entender também algo mais sobre o judeu. Então lá no terceiro dia Deus disse "reúna-se a massa das águas num só volume e faça surgir o elemento seco, a terra"... não é isso? Ele junta a massa das águas num só continente para surgir a terra. E aí Ele diz "faça da terra surgir então a erva verde de todos os tipos". Sendo esse sentimento de contentamento, que é um misto de contentamento e gratidão, que é o que o sujeito sente quando ele é aliviado de um calor intenso, quando ele sai da areia e vai para a grama, vamos dizer... é o sentimento característico do judeu em relação ao mundo. Inúmeros místicos judeus dizem que a grama é a criatura mais perfeita. Os místicos judeus, eles passavam horas e horas sentados na grama e olhando para ela para entendê-la. Eles diziam: "a grama é a única das criaturas que não fere os mandamentos de Deus". É sempre bom estar na grama, é sempre bom ter grama perto de você. Existe um eco desse pensamento judaico numa das escrituras cristãs lá no apocalipse. Tem um dia então que Deus manda um anjo descer uma praga sobre as plantas na Terra e ele fala: "mas não fira a grama". Deus vai destruir um terço das árvores, um terço das frutas, "mas não fira a relva". Vocês lembram disso aí? Além disso, a grama está sempre abaixo de todas as coisas, o que é uma espécie de perfeição de humildade. É fácil você não notar que a grama está lá, no entanto, se ela não estivesse ela faria uma falta tremenda, você perceberá que algo está faltando. Não é isso? Se ela estiver não é nada, é o só o chão onde você pisa, mas se ela não estiver, algo se tornou mais pobre. Tá claro isso aí? Pois bem, é assim que o povo de Israel se sente diante do mundo. Quando eles estão lá, você pensa que eles são o chão em que você pisa, mas se eles não estiverem, farão uma falta tremenda. Existe algo sobre o ser humano que você não vai entender se não existir o povo de Israel. Então, voltando um pouquinho, do ponto de vista judaico a relva surge justamente quando se contraem as águas numa só região, quando as águas são delimitadas e cercadas. Antes, o mundo inteiro estava coberto de água, então as águas não têm um limite. Aí elas são reunidas numa área limitada, delimitada, você tem o limite das águas e fora delas tem a terra. Veja bem, a nossa imaginação tende a ver as coisas do ponto de vista contrário: a terra se estende e ela tem um limite a partir do qual é a água. Mas se você pensar que o mundo era originariamente água você vai ver que o limite não é o limite da terra, é o limite da água. É a água que foi contida numa área limitada e surgiu a terra. Essa limitação das águas é para o judeu então um símbolo da limitação da sua liberdade em nome de uma relação com Deus. Veja bem, a esfera dos seus desejos é indefinida e ilimitada. Sua psique pode desejar qualquer coisa em qualquer circunstância. Então ela é comparável a essa massa de águas que cobre tudo. Aí você restringe essa massa e dá um limite para ela. Quando você dá esse limite surge a terra e da terra surge naturalmente a vegetação. Tá claro isso aí? Agora, se você observar naturalmente... veja bem, o povo hebreu vivia na natureza, e numa natureza hostil. Então ele percebia, por exemplo, que no deserto você sente claramente toda a força do sol. Mas se você reunir as águas, surge a vegetação naturalmente. Mesmo a força do sol não é capaz de anular a força da vegetação. Então a vegetação passa a representar para o judeu justamente o quê? O conjunto de bens espirituais e materiais, de coisas que te deixam contente que surgem justamente da restrição da sua liberdade numa determinada relação. Tá claro isso aí? É só você lembrar do exemplo de uma relação pessoal de dois indivíduos humanos: existem inúmeros traços que distinguem um indivíduo que você só percebe na medida em que você restringe a sua liberdade para manter uma relação com aquele indivíduo. Você só descobre por causa disso. [Traços] que surgem como uma decorrência natural dessa sua restrição voluntária da sua liberdade. Até então, até o momento dessas restrições você não conhece a pessoa, você conhece só os seus desejos em relação à pessoa. A mesma coisa vale com relação a Deus. Enquanto o sujeito não faz esse conjunto de restrições ele não conhece Deus, ele conhece os desejos dele em relação a Deus. Ele não sabe como é Deus, ele só sabe o que ele quer de Deus. Justamente o que caracteriza o judeu, o que caracteriza ele é a fé inabalável de que dessa restrição voluntária só surge o bem, só surgem coisas que aliviam e facilitam a sua vida, por mais difícil que a restrição possa parecer de início. É por isso que eles encaram os sofrimentos deles como povo no decorrer da história como restrições temporárias à sua liberdade para que possa se destacar e surgir um outro aspecto de Deus e da realidade para eles. Então existem duas idéias que dominam a mente dele [o povo judeu]. Primeiro a idéia de que tudo tem um sentido que se explica depois, na história mesmo. Veja bem que para o budista e para o hindu o sentido está fora da história, o sentido é supra-histórico, não é algo que se revela depois, é algo que sempre existiu e que está num plano fora do tempo. Para o povo hebreu não, todo e qualquer sofrimento que você tem agora tem um sentido que se revela depois no tempo. Por quê? Porque é uma restrição à liberdade para que você conheça melhor a pessoa com quem você está se relacionando. É fácil de perceber isso: se você conhece uma pessoa hoje, a primeira coisa que ela faz que te desagrada, você não quer ver essa pessoa nunca mais. Você nunca vai saber como era aquela pessoa. Você não tem a menor idéia do que ela tinha para oferecer, porque você olhou só a massa de desejos que você tinha em relação a ela e viu que essa massa de desejos não está contente. Aí o judeu vai te dizer "olha, é o seguinte meu filho, você não aprendeu uma lição sobre a vida". Essa massa de desejos não tem um limite por si mesma, então não é possível contentá-la. O único jeito de contentá-la é criando um limite para ela. Então o que acontece? Eles, nessa relação com Deus, eles descobriram o segredo da prosperidade, tanto espiritual quanto material. Eles descobriram: "olha, o único jeito de perceber como as coisas realmente são é restringindo seus desejos voluntariamente. E quando você percebe como as coisas são, você percebe que as coisas são muito boas. Então cada episódio, cada capítulo da história do povo hebreu mostra justamente isso: uma sequência de sofrimentos que restrigem a liberdade deles até eles aceitarem aqueles sofrimentos justamente como um modo de restrição da sua liberdade para se relacionar com Deus. Aí a realidade se abre para eles, e ela se abre justamente como um tapete de relva, uma paisagem maravilhosa.»



Luiz Gonzaga de Carvalho Neto - As Religiões do Mundo I, Aula 9
«O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi feito; e ajuda-o a eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado de seu empreendimento. Por que hesitar ante uma expedição marítima, quando o Herói mítico já a efetuou num Tempo fabuloso? Basta seguir o seu exemplo. De modo análogo, por que ter medo de se instalar num território desconhecido e selvagem, quando se sabe o que é preciso fazer? Basta, simplesmente, repetir o ritual cosmogonico, e o território desconhecido ( = o "Caos") se transforma em "Cosmo", torna-se uma imago mundi, uma "habitação" ritualmente legitimada. A existência de um modelo exemplar não entrava o processo criador. O modelo mítico presta-se a aplicações ilimitadas.»

Mircea Eliade, Mito e Realidade

«[...] o sagrado é o real por excelência. Tudo o que pertence à esfera do profano não participa do Ser, visto que o profano não foi fundado ontologicamente pelo mito, não tem modelo exemplar. Conforme não tardaremos a ver, o trabalho agrícola é um ritual revelado pelos deuses ou pelos Heróis civilizadores. É por isso que constitui um ato real e significativo. [...] Tudo quanto os deuses ou os antepassados fizeram – portanto tudo o que os mitos contam a respeito de sua atividade criadora – pertence à esfera do sagrado e, por conseqüência, participa do Ser. Em contrapartida, o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é pois uma atividade vã e ilusória, enfim, irreal.»

Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano

«Cada um dos exemplos citados [...] revela a mesma concepção ontológica "primitiva": um objeto ou um ato torna-se real apenas enquanto serve para imitar ou repetir um arquétipo. Assim, a realidade é alcançada unicamente por intermédio da repetição ou da participação; tudo o que carece de um modelo exemplar é "insignificante", isto é, está destituído de realidade. Desse modo, os homens demonstram uma tendência no sentido de se tornarem arquetípicos e paradigmáticos. Essa tendência pode até parecer paradoxal, no sentido de que o homem de uma cultura tradicional se vê como uma pessoa real apenas até o ponto em que deixa de ser ele próprio (para um observador moderno), satisfazendo-se com a imitação e a repetição dos gestos de outro. Ou seja, ele se vê como uma pessoa real, isto é, como "ele próprio de verdade", apenas e unicamente até o ponto em que deixa de ser isso. Daí, pode se afirmar que essa ontologia "primitiva" tem uma estrutura platônica; e, neste caso, Platão poderia ser encarado como o destacado filósofo da "mentalidade primitiva", isto é, como o pensador que conseguiu dar coerência e validade filosófica aos modos de vida e comportamento da humanidade arcaica. Obviamente, isso em nada diminui a originalidade de seu gênio filosófico; porque ele merece toda a nossa admiração por seus esforços visando justificar teoricamente essa visão da humanidade arcaica, através dos meios dialéticos que a espiritualidade de sua época colocava à sua disposição.»

Mircea Eliade, Mito do Eterno Retorno

Mircea Eliade sobre Freud

«Para Freud a religião, bem como a sociedade humana e a cultura em geral tiveram inicio com um assassino primordial. Freud aceitava o ponto de vista de Atkinson de que as comunidades mais antigas consistiam em “um macho adulto e um certo número de fêmeas e indivíduos imaturos, sendo os machos existentes entre estes últimos afastados pelo chefe do grupo à medida que atingiam idade suficiente para despertar o seu ciúme”. Os filhos expulsos acabavam por matar o pai, comiam-no e apropriavam-se das fêmeas. Freud escreve: “O fato de comerem também a sua vítima é uma coisa natural entre os selvagens canibais (...). O banquete totêmico, quiçá o primeiro festim que a humanidade celebrou, era a repetição, o festival da memória, deste ato criminoso notável, com o qual tanta coisa teve início – a organização da sociedade, as restrições morais e a religião”. Como observa Wilhelm Schmidt, Freud “sustenta que Deus é nada mais nada menos que o Pai físico sublimado dos seres humanos; consequentemente, no sacrifício totêmico é o próprio Deus que é morto e sacrificado. Esta chacina do pai-deus é o antigo pecado original da humanidade. Esta culpa de morte é expiada pela morte sangrenta de Cristo”.

A interpretação que Freud faz da religião foi repetidamente criticada e inteiramente rejeitada pelos etnólogos, de W. H. Rivers e F. Boas a A. L. Kroeber, B. Malinowski e W. Schmidt. Compilando as objecções etnológicas mais importantes às extravagantes reconstruções apresentadas em Totem und Tabu, Schmidt observa que (1) o totemismo não se verifica nos primórdios da religião; (2) não é universal, nem todos os povos passaram por ele; (3) Frazer já tinha provado que, das muitas centenas de tribos totêmicas, apenas quatro conhecem um rito que se aproxima do cerimonial de matar e comer o “totem-deus” (um rito que Freud supunha ser uma característica invariável do totemismo); além disso, este rito nada tem a ver com a origem do sacrifício, dado que o totemismo não ocorre de todo nas culturas mais antigas; (4) “os povos pré-totêmicos nada conhecem do canibalismo, e o parricídio entre eles seria uma pura impossibilidade, psicológica, sociológica e eticamente”; e (5) “a forma da família pré-totêmica e, consequentemente, da família humana mais antiga, de que esperamos conhecer algo através da etnologia, não consiste nem numa promiscuidade geral nem num casamento de grupo, nenhum dos quais, segundo a decisão dos principais etnólogos, existiu jamais”.
[...]
«É claro que há que distinguir a grande contribuição de Freud para o saber, isto é, a descoberta do inconsciente e da psicanálise, da ideologia freudiana, que é apenas mais uma entre as inúmeras ideologias positivistas. Freud também pensava que, com o auxilio da psicanálise tinha atingido a fase “primordial” da cultura e religião humanas. Como vimos, ele identificou a origem da religião e da cultura com um assassínio primevo, mais exatamente com o primeiro parricídio. Para Freud, Deus era apenas o pai físico sublimado que era morto pelos seus filhos expulsos. Esta espantosa explicação foi universalmente criticada e rejeitada por todos os etnólogos responsáveis. Mas Freud nem renunciou à sua teoria nem a modificou. Provavelmente pensou ter encontrado provas do assassínio de Deus Pai entre os seus pacientes vienenses. Mas esta “descoberta” equivalia a dizer que alguns homens modernos começavam a sentir as consequências do seu “deícidio”. Tal como Nietzsche anunciara, trinta anos antes da publicação de Totem und Tabu, Deus estava morto; ou, mais precisamente, fora morto pelo homem. Talvez Freud estivesse a projetar inconscientemente a neurose de alguns dos seus pacientes vienenses num passado mítico.»

Mircea Eliade - "Origens"

domingo, 13 de setembro de 2015

«Jünger a suggéré que, pour se représenter le nihilisme, il faut moins songer à des poseurs de bombes ou à de jeunes activistes lecteurs de Nietzsche, qu’à des hauts fonctionnaires glacés, des savants ou des financiers dans l’exercice de leur fonction. Le nihilisme n’est rien d’autre en effet que l’univers mental requis par leur état, celui de la rationalité et de l’efficacité comme valeurs suprêmes. Dans le meilleur des cas, il se manifeste par la volonté de puissance et, le plus souvent, par la plus sordide trivialité. Dans le monde du nihilisme, tout est soumis à l’utilitaire et au désir, autrement dit à ce qui est, qualitativement, inférieur. Le monde du nihilisme est celui qui nous a été fabriqué.

C’est le monde du matérialisme appliqué, la nature transformée en poubelle, l’amour travesti en consommation sexuelle, les mystères de la personnalité expliqués par la libido, et ceux de la société étudiés par la lutte des classes, l’éducation ravalée en fabrique de spécialistes, l’enflure morbide de l’information substituée à la connaissance, la politique rétrogradée en auxiliaire de l’économie, le bonheur ramené à l’idée qu’en donne le tourisme de masse, et, quand les choses tournent mal, la glissade sans frein vers la violence.»
 
Dominique Venner
 
 
 

domingo, 30 de agosto de 2015

A. E. Taylor | Primeiros Princípios e Indução em Aristóteles

Science is demonstrated knowledge, that is, it is the knowledge that certain truths follow from still simpler truths.  Hence the simplest of all the truths of any science cannot themselves be capable of being known by inference.  You cannot infer that the axioms of geometry are true because its conclusions are true, since the truth of the conclusions is itself a consequence of the truth of the axioms.  Nor yet must you ask for demonstration of the axioms as consequences of still simpler premisses, because if all truths can be proved, they ought to be proved, and you would therefore require an infinity of successive demonstrations to prove anything whatever.  But under such conditions all knowledge of demonstrated truth would be impossible.  The first principles of any science must therefore be indemonstrable. They must be known, as facts of sense-perception are known, immediately and not mediately.  How then do we come by our knowledge of them? Aristotle's answer to this question appears at first sight curiously contradictory.  He seems to say that these simplest truths are apprehended intuitively, or on inspection, as self-evident by Intelligence or Mind.  On the other hand, he also says that they are known to us as a result of induction from sense-experience.  Thus he seems to be either a Platonist or an empiricist, according as you choose to remember one set of his utterances or another, and this apparent inconsistency has led to his authority being claimed in their favour by thinkers of the most widely different types.  But more careful study will show that the seeming confusion is due to the fact that he tries to combine in one statement his answers to two quite different questions, (1) how we come to reflect on the axioms, (2) what evidence there is for their truth.  To the first question he replies, "by induction from experience," and so far he might seem to be a precursor of John Stuart Mill. Successive repetitions of the same sense-perceptions give rise to a single experience, and it is by reflection on experience that we become aware of the most ultimate simple and universal principles.  We might illustrate his point by considering how the thought that two and two are four may be brought before a child's mind.  We might first take two apples, and two other apples and set the child to count them.  By repeating the process with different apples we may teach the child to dissociate the result of the counting from the particular apples employed, and to advance to the thought, "any two apples and any two other apples make four apples."  Then we might substitute pears or cherries for the apples, so as to suggest the thought, "two fruits and two fruits make four fruits."  And by similar methods we should in the end evoke the thought, "any two objects whatever and any other two objects whatever make four objects."  This exactly illustrates Aristotle's conception of the function of induction, or comparison of instances, in fixing attention on a universal principle of which one had not been conscious before the comparison was made.

Now comes in the point where Aristotle differs wholly from all empiricists, later and earlier. Mill regards the instances produced in the induction as having a double function; they not merely fix the attention on the principle, they also are the evidence of its truth.  This gives rise to the greatest difficulty in his whole logical theory.  Induction by imperfect enumeration is pronounced to be (as it clearly is) fallacious, yet the principle of the uniformity of Nature which Mill regards as the ultimate premiss of all science, is itself supposed to be proved by this radically fallacious method.  Aristotle avoids a similar inconsistency by holding that the sole function of the induction is to fix our attention on a principle which it does not prove. He holds that ultimate principles neither permit of nor require proof.  When the induction has done its work in calling attention to the principle, you have to see for yourself that the principle is true.  You see that it is true by immediate inspection just as in sense-perception you have to see that the colour before your eyes is red or blue.  This is why Aristotle holds that the knowledge of the principles of science is not itself science (demonstrated knowledge), but what he calls intelligence, and we may call intellectual intuition.  Thus his doctrine is sharply distinguished not only from empiricism (the doctrine that universal principles are proved by particular facts), but also from all theories of the Hegelian type which regard the principles and the facts as somehow reciprocally proving each other, and from the doctrine of some eminent modern logicians who hold that "self-evidence" is not required in the ultimate principles of science, as we are only concerned in logic with the question what consequences follow from our initial assumptions, and not with the truth or falsehood of the assumptions themselves.

The result is that Aristotle does little more than repeat the Platonic view of the nature of science. Science consists of deductions from universal principles which sensible experience "suggests," but into which, as they are apprehended by a purely intellectual inspection, no sense-data enter as constituents. The apparent rejection of "transcendental moonshine" has, after all, led to nothing.  The only difference between Plato and his scholar lies in the clearness of intellectual vision which Plato shows when he expressly maintains in plain words that the universals of exact science are not "in" our sense-perceptions and therefore to be extracted from them by a process of abstraction, but are "apart from" or "over" them, and form an ideal system of interconnected concepts which the experiences of sense merely "imitate" or make approximation to.

One more point remains to be considered to complete our outline of the Aristotelian theory of knowledge.  The sciences have "principles" which are discerned to be true by immediate inspection. But what if one man professes to see the self-evident truth of such an alleged principle, while another is doubtful of its truth, or even denies it?  There can be no question of silencing the objector by a demonstration, since no genuine simple principle admits of demonstration.  All that can be done, e.g. if a man doubts whether things equal to the same thing are equal to one another, or whether the law of contradiction is true, is to examine the consequences of a denial of the axiom and to show that they include some which are false, or which your antagonist at least considers false.  In this way, by showing the falsity of consequences which follow from the denial of a given "principle," you indirectly establish its truth.  Now reasoning of this kind differs from "science" precisely in the point that you take as your major premiss, not what you regard as true, but the opposite thesis of your antagonist, which you regard as false.  Your object is not to prove a true conclusion but to show your opponent that his premisses lead to false conclusions.  This is "dialectical" reasoning in Aristotle's sense of the word, i.e. reasoning not from your own but from some one else's premisses.  Hence the chief philosophical importance which Aristotle ascribes to "dialectic" is that it provides a method of defending the undemonstrable axioms against objections.  Dialectic of this kind became highly important in the mediæval Aristotelianism of the schoolmen, with whom it became a regular method, as may be seen e.g. in the Summa of St. Thomas, to begin their consideration of a doctrine by a preliminary rehearsal of all the arguments they could find or devise against the conclusion they meant to adopt. Thus the first division of any article in the Summa Theologiæ of Thomas is regularly constituted by arguments based on the premisses of actual or possible antagonists, and is strictly dialectical.  (To be quite accurate Aristotle should, of course, have observed that this dialectical method of defending a principle becomes useless in the case of a logical axiom which is presupposed by all deduction.  For this reason Aristotle falls into fallacy when he tries to defend the law of contradiction by dialectic.  It is true that if the law be denied, then any and every predicate may be indifferently ascribed to any subject. But until the law of contradiction has been admitted, you have no right to regard it as absurd to ascribe all predicates indiscriminately to all subjects.  Thus, it is only assumed laws which are not ultimate laws of logic that admit of dialectical justification.  If a truth is so ultimate that it has either to be recognised by direct inspection or not at all, there can be no arguing at all with one who cannot or will not see it.)


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A. E. Taylor - "Aristotle"

A. E. Taylor | Conhecimento científico em Aristóteles

Sense-perception of itself never gives us scientific truth, because it can only assure us that a fact is so; it cannot explain the fact by showing its connection with the rest of the system of facts, "it does not give the reason for the fact."  Knowledge of perception is always "immediate," and for that very reason is never scientific. If we stood on the moon and saw the earth, interposing between us and the sun, we should still not have scientific knowledge about the eclipse, because "we should still have to ask for the reason why."  (In fact, we should not know the reason why without a theory of light including the proposition that light-waves are propagated in straight lines and several others.) Similarly Aristotle insists that Induction does not yield scientific truth.  "He who makes an induction points out something, but does not demonstrate anything."

For instance, if we know that each species of animal which is without a gall is long-lived, we may make the induction that all animals without a gall are long-lived, but in doing so we have got no nearer to seeing why or how the absence of a gall makes for longevity.  The question which we may raise in science may all be reduced to four heads, (1) Does this thing exist? (2) Does this event occur? (3) If the thing exists, precisely what is it? and (4) If the event occurs, why does it occur? and science has not completed its task unless it can advance from the solution of the first two questions to that of the latter two. Science is no mere catalogue of things and events, it consists of inquiries into the "real essences" and characteristics of things and the laws of connection between events.

Looking at scientific reasoning, then, from the point of view of its formal character, we may say that all science consists in the search for "middle terms" of syllogisms, by which to connect the truth which appears as a conclusion with the less complex truths which appear as the premisses from which it is drawn.  When we ask, "does such a thing exist?" or "does such an event happen?" we are asking, "is there a middle term which can connect the thing or event in question with the rest of known reality?"  Since it is a rule of the syllogism that the middle term must be taken universally, at least once in the premisses, the search for middle terms may also be described as the search for universals, and we may speak of science as knowledge of the universal interconnections between facts and events.

A science, then, may be analysed into three constituents. These are: (1) a determinate class of objects which form the subject-matter of its inquiries.  In an orderly exhibition of the contents of the science, these appear, as in Euclid, as the initial data about which the science reasons; (2) a number of principles, postulates, and axioms, from which our demonstrations must start.  Some of these will be principles employed in all scientific reasoning.  Others will be specific to the subject-matter with which a particular science is concerned; (3) certain characteristics of the objects under study which can be shown by means of our axioms and postulates to follow from our initial definitions, the accidentia per se of the objects defined.  It is these last which are expressed by the conclusions of scientific demonstration.  We are said to know scientifically that B is true of A when we show that this follows, in virtue of the principles of some science, from the initial definition of A.  Thus if we convinced ourselves that the sum of the angles of a plane triangle is equal to two right angles by measurement, we could not be said to have scientific knowledge of the proposition.  But if we show that the same proposition follows from the definition of a plane triangle by repeated applications of admitted axioms or postulates of geometry, our knowledge is genuinely scientific.  We now know that it is so, and we see why it is so; we see the connection of this truth with the simple initial truths of geometry.

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A. E. Taylor - "Aristotle"

sexta-feira, 24 de abril de 2015

René Guénon | O Verbo como Símbolo



 Em "Os Símbolos da Ciência Sagrada"

Tradução de Constantino K. Riemma
Revisão de Bete Torii e Lívia Krassuski


Publicado na revista Regnabit, jan. 1926



Já tivemos ocasião de falar da importância da forma simbólica na transmissão dos ensinamentos doutrinários de ordem tradicional. Voltamos ao assunto para expor algumas particularidades complementares e mostrar, de modo ainda mais explícito, os diferentes pontos de vista sob os quais pode ser considerado.

Em primeiro lugar, o simbolismo nos parece especialmente adaptado às exigências da natureza humana, que não é puramente intelectual e tem necessidade de uma base sensível para elevar-se às esferas superiores. É preciso tomar o composto humano tal como é, ao mesmo tempo uno e múltiplo em sua complexidade real, fato esse que se tem grande tendência a esquecer, desde que Descartes pretendeu estabelecer uma separação radical e absoluta entre a alma e o corpo. Para uma inteligência pura, seguramente, nenhuma forma exterior, nenhuma expressão, é requerida para compreender a verdade, nem mesmo para comunicá-la a outras inteligências puras, na medida em que forem comunicáveis. Mas o mesmo não acontece com o homem. No fundo, toda expressão, toda formulação, seja qual for, é um símbolo do pensamento traduzido exteriormente. Nesse sentido, a própria linguagem nada mais é que um simbolismo. Conseqüentemente, não deve haver oposição entre o emprego de palavras e de símbolos figurativos. Esses dois modos de expressão seriam antes complementares (aliás, eles podem combinar-se, já que a escrita é primitivamente ideográfica e, às vezes, como na China, conservou esse caráter).

De um modo geral, a forma da linguagem é analítica, “discursiva”, como a razão humana, da qual é o instrumento próprio, seguindo ou reproduzindo seu desenrolar, tão exatamente quanto possível. O símbolo propriamente dito, ao contrário, é essencialmente sintético e, por isso mesmo, “intuitivo” de um certo modo, o que o torna mais apto do que a linguagem para servir de ponto de apoio à “intuição intelectual”, que está acima da razão e não deve ser confundida com a intuição inferior, à qual recorrem diversos filósofos contemporâneos. Portanto, se não nos contentarmos em constatar uma diferença e se quisermos falar de superioridade, esta estaria, apesar do que pretendem alguns, com o simbolismo sintético, que abre possibilidades de concepção verdadeiramente ilimitadas, enquanto que a linguagem, com significações mais definidas e mais determinadas, impõe sempre limites mais ou menos estreitos ao entendimento.

Que não se vá dizer, portanto, que a forma simbólica só é boa para o vulgar; o contrário é que seria verdade; ou, melhor ainda, ela é boa para todos, pois ajuda a compreender, de modo mais ou menos completo e mais ou menos profundo, a verdade que representa, na medida das possibilidades intelectuais próprias de cada um. É assim que as mais altas verdades, que não seriam de modo algum comunicáveis ou transmissíveis por qualquer outro meio, tornamse acessíveis até certo ponto desde que sejam, se pudermos assim dizer, incorporadas aos símbolos, que as dissimularão sem dúvida a muitos, mas que as manifestarão em todo seu esplendor aos olhos daqueles que sabem ver.

Isso quer dizer, então, que o uso do simbolismo é uma necessidade? Aqui, é preciso estabelecer uma distinção: de modo absoluto, nenhuma forma exterior é necessária em si; todas são de igual modo contingentes e acedentes em relação ao que expressam ou representam. É assim que, de acordo com o ensinamento dos hindus, uma figura qualquer, por exemplo, uma estátua que simboliza algum aspecto da Divindade, só deve ser considerada como um “suporte”, um ponto de apoio para a meditação; trata-se, pois, de um simples “auxiliar” e nada mais. Um texto védico oferece a esse respeito uma comparação que esclarece perfeitamente o papel dos símbolos e das formas exteriores em geral: tais formas são como o cavalo que permite ao homem concluir mais rápido uma viagem e com muito menos esforço do que se tivesse que empreendê-la através de seus próprios recursos. Sem dúvida, se esse homem não tivesse um cavalo à sua disposição, poderia apesar de tudo alcançar o seu objetivo, mas quão maior não seria a dificuldade! Se ele pode servir-se de um cavalo, seria um grande contra-senso recusálo, a pretexto de ser mais digno não recorrer a qualquer ajuda. Não será assim, precisamente, que agem os detratores do simbolismo? Além disso, se a viagem for longa e penosa, mesmo que não haja uma impossibilidade absoluta de fazê-la a pé, pode ocorrer uma verdadeira impossibilidade prática de chegar à meta. O mesmo se passa com os ritos e os símbolos; eles não são necessários por causa de uma necessidade absoluta, mas sim, de algum modo, por necessidade de conveniência, face às condições da natureza humana.

Mas não basta considerar o simbolismo pelo lado humano, como fizemos até aqui. Convém, para descobrirmos todo o seu alcance, considerá-lo também pelo lado divino, se for lícito assim dizer. Já que se constata que o simbolismo tem seu fundamento na própria natureza dos seres e das coisas, que está em perfeita conformidade com as leis dessa natureza, e se refletimos sobre o fato de que as leis naturais nada mais são que uma expressão e uma exteriorização da Vontade divina, isso tudo não nos autorizaria a afirmar que o simbolismo tem origem “não-humana”, como dizem os hindus, ou, em outros termos, que seu princípio origina-se além e acima da humanidade?

Não é sem razão que se pode lembrar, a propósito do simbolismo, as primeiras palavras do Evangelho de São João: “No princípio era o Verbo”. O Verbo, o Logos, é, ao mesmo tempo, Pensamento e Palavra: em si, Ele é o Intelecto divino, o “lugar dos possíveis". Em relação a nós, Ele se manifesta e se exprime pela Criação, na qual se realizam, na existência atual, alguns desses possíveis que, enquanto essências, estão contidas Nele desde toda eternidade. A Criação é obra do Verbo. Ela é também, por isso mesmo, sua manifestação, sua afirmação exterior. Por isso, o mundo é como uma linguagem divina para aqueles que sabem compreendê-la: Caeli enarrant gloriam Dei (Salmos 19, 2). Desse modo, o filósofo Berkeley estava certo ao afirmar que o mundo é “a linguagem que o Espírito infinito fala aos espíritos finitos”.,Todavia, ele não tinha razão ao acreditar que essa linguagem é apenas um conjunto de sinais arbitrários, já que, na realidade, nada existe de arbitrário na linguagem humana, onde toda significação deve ter, na origem, seu fundamento em alguma conveniência ou harmonia natural entre o signo e coisa significada. Por ter recebido de Deus o conhecimento da natureza de todos os seres vivos é que Adão pode dar-lhes os nomes (Gênesis 19-20). Todas as tradições antigas concordam ao ensinar que o verdadeiro nome de um ser estabelece uma unidade com sua natureza ou sua própria essência.

Se o Verbo é Pensamento no interior e Palavra no exterior, e se o mundo é o efeito da Palavra divina proferida na origem dos tempos, a natureza toda pode ser tomada como um símbolo da realidade sobrenatural. Tudo o que existe, sob qualquer forma que seja, por ter seu princípio no Intelecto divino, traduz ou representa esse princípio à sua maneira e segundo sua ordem de existência. Assim, de uma ordem à outra, todas as coisas se encandeiam e se correspondem, concorrendo para a harmonia universal e total, que é como um reflexo da própria Unidade divina. Essa correspondência é o verdadeiro fundamento do simbolismo e é por isso que as leis de um domínio podem ser tomadas para simbolizar realidades de uma ordem superior, na qual têm sua razão profunda e que constitui, ao mesmo tempo, seu princípio e fim.

Assinalemos, nesta oportunidade, o erro das modernas interpretações “naturalistas” a propósito das antigas doutrinas tradicionais, interpretações essas que invertem, pura e simplesmente, a hierarquia das relações entre as diferentes ordens de realidades. Por exemplo: os símbolos ou os mitos jamais tiveram a função de representar o movimento dos astros; a verdade é que se encontram muitas vezes figuras inspiradas nesses movimentos, mas destinadas a exprimir de modo analógico alguma outra coisa, pois as leis do movimento dos astros traduzem fisicamente os princípios metafísicos dos quais elas dependem. O inferior pode simbolizar o superior, mas o inverso é impossível Além disso, se o símbolo não estiver mais próximo da ordem sensível, como poderá cumprir a função a que se destina? Na natureza, o sensível pode simbolizar o supra-sensível, e toda ordem natural, por sua vez, pode ser um símbolo da ordem divina. E, justamente por isso, se considerarmos homem em especial, não seria legítimo dizer que ele é também um símbolo, já que foi “criado à imagem de Deus” (Gênesis, 1, 26-27)? Acrescentemos, ainda, que a natureza apenas adquire toda sua significação quando é considerada como provedora de um meio para nos elevar ao conhecimento das verdades divinas, o que também é, precisamente, o papel essencial que reconhecemos para o simbolismo. [ 1. Talvez seja útil observar que esse ponto de vista, de acordo com o qual a natureza é considerada como um símbolo do sobrenatural, não é de modo algum novo, e que, ao contrário, foi de uso na Idade Média, principalmente pela escola franciscana e, em particular, por São Boaventura. Notemos também que a analogia, no sentido tomista dessa palavra, que permite remontar ao conhecimento de Deus a partir do conhecimento das criaturas, nada mais é que um modo de expressão simbólica baseado na correspondência entre a ordem natural e a sobrenatural ].

Essas considerações poderiam ser desenvolvidas quase que indefinidamente. Preferimos, no entanto, deixar a cada um o cuidado de empreender tal desenvolvimento através do esforço de reflexão pessoal, pois nada poderia ser mais proveitoso. Tal como os símbolos que estamos estudando, estas notas devem ser apenas um ponto de partida para a meditação. As palavras, além disso, só de forma muito imperfeita podem traduzir o que estamos tratando. No entanto, existe ainda um aspecto da questão, e não dos menos importantes, que tentaremos fazer com que seja compreendido ou pelo menos pressentido, por uma breve indicação.

O Verbo Divino, dizíamos, exprime-se na Criação. E isso é comparável, analogicamente e guardadas as devidas proporções, ao pensamento expresso mediante formas (não cabe mais aqui fazer uma distinção entre a linguagem e os símbolos propriamente ditos) que o velam e o manifestam ao mesmo tempo. A Revelação primordial, obra do Verbo, do mesmo modo que a Criação, incorpora-se, por assim dizer, nos símbolos transmitidos através das idades desde as origens da humanidade. Esse processo também é análogo, em sua ordem, ao da própria Criação. Por outro lado, não poderíamos ver nessa incorporação simbólica da tradição “não-humana”, uma espécie de imagem antecipada, de “prefiguração” da Encarnação do Verbo? E isso também não permitiria perceber, em certa medida, a misteriosa relação existente entre a Criação e a Encarnação, que é seu coroamento?

Concluiremos com uma última observação relativa à importância do símbolo universal do Coração e, em particular, à forma de que se reveste na tradição cristã, ou seja, do Sagrado Coração. Se o simbolismo está em sua essência estritamente conforme o “plano divino” e se o Sagrado Coração é o centro do ser, tanto real como simbolicamente, o próprio símbolo do Coração, ou seus equivalentes, deve ocupar um lugar verdadeiramente central em todas as doutrinas que se originam, de forma mais ou menos direta, da tradição primordial. É o que tentaremos demonstrar em alguns estudos a seguir.