domingo, 22 de março de 2015

Mário Ferreira dos Santos | Acentuada supervalorização romântica da intuição, da sensibilidade e da sem-razão

Em nossa obra, Filosofia e Romantismo, juntamos amplos aspectos da exagerada valorização romântica sobre a sensibilidade, a sensação, os sentimentos comuns, a intuição sensível, a fantasia e a sem-razão, e os estragos que o romantismo realizou, não só no filosofar, como em todas as outras manifestações superiores do homem, que foram deploráveis, e cujos frutos ácidos colhemos agora.¹ É que as teses românticas não são criadas num determinado período histórico, como o foi o nosso de fins do século XVIII até os dias atuais, em que se processou o movimento romântico, não só na arte, na filosofia, como até nas atitudes éticas e morais dos homens, incluindo a política, a economia, etc. Elas estão presentes em todas as fases dos ciclos culturais, em graus maiores ou menores, porque elas constituem um lastro, não só emocional, mas também intelectual do próprio homem, através da sua existência.

Elas desabrocham, sobretudo, em nossa fase juvenil, e só tomam um aspecto acentuado, a ponto de invadir amplos campos sociais, quando as condições históricas são favoráveis, como aconteceu no período citado acima.

Caracterizam, primacialmente, o romantismo (e passamos a fazê-lo em forma sintética) os seguintes aspectos:

  • Valorização da sensibilidade sobre a intelectualidade.
  • A sensação é mais rica do que a razão. Esta é estéril, apenas classificadora de estruturas despojadas de vida. A vida afetiva é mais profunda e, pela intuição sensível e afetiva, o homem penetra mais na intimidade das coisas. A razão apenas rotula, cataloga, não invade o âmago das coisas.
  • A sensibilidade é criadora. A arte é superior ao pensamento especulativo. O artista não é um visionário qualquer, é um profeta e antecede as criações da ciência e da técnica (o que não é historicamente verdadeiro). O artista cria mundos novos; o especulador apenas reúne num museu de ideias os resultados obtidos, as fichas do conhecimento.
  • A vida supera a razão — As razões da vida são superiores às da razão. Aquela é criadora, e não esta.
  • A sem-razão supera os esquemas mecânicos e geométricos da racionalidade, e é muito mais rica de intuições e de descobertas que aquela.

Calcados nesses preconceitos, exagerados até o extremo, e tendo a seu favor uma argumentação canhestra, o romantismo, pelos apelos que faz à irracionalidade, tem, naturalmente, de provocar em todas as almas propensas apenas ao sentimento, e incapazes de penetrar no pensamento em profundidade, um entusiasmo sem par. Quando as condições sociais são favoráveis, seu campo está aberto às vastas camadas. Depois da derrota napoleônica e da formação da Santa Aliança, em que se prometia desterrar de uma vez para sempre as guerras na Europa, e impedir o advento de outro Napoleão, era natural que o entusiasmo se apossasse das multidões cansadas da carnificina napoleônica. O caminho estava aberto à valsa, música da sensibilidade e imensamente vital, às canções alegres, às doces esperanças da boa vida, da paz, da compreensão. Era mister deixar agora que a vida se afirmasse, que os sentimentos se soltassem de suas peias, que os homens tragassem com largos sorvos a linfa da felicidade… E o sonho prolongou-se por anos e anos, sem dúvida anos felizes para a humanidade europeia, até que aos poucos essas esperanças se desvaneceram, mais ríspido, até cair nas manifestações mórbidas do romantismo negro, dos “assassinos de Deus”, dos niilistas negativos, dos satanistas, dos desesperistas de toda espécie, da vivência do tédio ao nojo, à náusea, à repugnância de viver, ao embotamento dos sentimentos, até alcançar o brutismo, desejo de se tornarem plantas, ou apenas de serem coisas sem sentido.

Não há período tão cheio de esperanças e tão cheio de misérias e desilusões, certos valores nunca foram tão exaltados, mas também nunca foram tão deprimidos. Nunca se ergueu a voz para ditirambos tão entusiásticos, e nunca a voz baixou aos roncos de revolta e a berros de ofensas vis.
Em suma, o romantismo foi um dos períodos em que melhor se cultivou o solo europeu para a grande messe satânica dos frutos malditos. Foi a época da bênção e da maldição. Tudo o que foi grande amesquinhou-se; tudo que era nobre vulgarizou-se; tudo que era superior deprimiu-se.




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¹ Entretanto, há, no romantismo, aspectos positivos. Herder quis dar ao romantismo um ímpeto capaz de lutar contra a nova escala de valores mercantilistas, revalorizando os sentimentos mais altos do homem, que o manchesterismo queria tomar apenas sob base econômica.