domingo, 22 de março de 2015

José Ortega Y Gasset sobre o homem-massa


Massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor — bom ou mau — por razões especiais, mas que se sente “como todo mundo” e, certamente, não se angustia com isso, sente-se bem por ser idêntico aos demais. Imagine-se um homem humilde que, ao tentar se avaliar por razões especiais — ao se perguntar se tem talento para isso ou para aquilo, se se destaca em algum aspecto —, conclui que não possui nenhuma qualidade fora do comum. Esse homem se sentirá medíocre e vulgar, mal dotado; mas não se sentirá “massa”.

Quando se fala de “minorias especiais”, a habitual má fé costuma distorcer o sentido dessa expressão, fingindo ignorar que o homem especial não é o petulante, que se julga superior aos outros, mas o que exige mais de si mesmo que a maioria, ainda que não consiga atingir essas exigências superiores. E é indubitável que a divisão mais radical que deve ser feita na humanidade é dividi-la em duas classes de criaturas: as que exigem muito de si mesmas e se acumulam de dificuldades e deveres, e as que não exigem de si nada de especial, para as quais viver é ser a cada instante o que já são, sem esforço para o aperfeiçoamento de si próprias, bóias que vão à deriva.

Isso me lembra que o budismo ortodoxo compõe-se de duas religiões distintas: uma mais rigorosa e difícil; outra mais branda e trivial; o Mahayana — “grande veículo” ou “grande caminho” — e o Hinayana — “pequeno veículo”, “caminho menor”. O decisivo é o fato de dirigirmos nossa vida para um ou para o outro veículo, para um máximo de exigências ou para um mínimo.
A divisão da sociedade em massas e minorias excepcionais não é, portanto, uma divisão em classes sociais, e sim em classes de homens, e não pode coincidir com a hierarquia decorrente de classes superiores e inferiores.

[…] a rigor, dentro de cada classe social há massa e minoria autêntica. Como veremos, mesmo nos grupos cuja tradição era seletiva, a predominância da massa e do vulgo é característica do tempo. Assim, na vida intelectual, que por sua própria essência requer e pressupõe a qualificação, nota-se o progressivo triunfo dos pseudo-intelectuais não qualificados, desqualificáveis e desqualificados por seu próprio conteúdo.

[…]

A velha democracia vivia aquecida por uma dose abundante de liberalismo e entusiasmo pela lei. Ao atender a esses princípios, o indivíduo se obrigava a uma disciplina difícil. As minorias podiam viver e atuar sob o amparo do princípio liberal e da norma jurídica. Democracia e lei, convivência legal, eram sinônimos. Hoje assistimos ao triunfo de uma hiperdemocracia na qual a massa atua diretamente sem lei, por meio de pressões materiais, impondo suas aspirações e seus gostos. É falso interpretarem-se as novas situações como se a massa tivesse se cansado da política e encarregasse de seu exercício pessoas especiais. Justamente o contrário. Isso era o que acontecia antes, era a democracia liberal. A massa presumia que, afinal de contas, com todos os seus defeitos e imperfeições, as minorias dos políticos entendiam um pouco mais dos problemas públicos do que ela. Agora, em vez disso, a massa acha que tem direito de impor e dar força de lei aos seus problemas do dia-a-dia. Duvido que em qualquer outra época da história a multidão tenha chegado a governar tão diretamente como em nossa época. Por isso falo em hiperdemocracia.

O mesmo acontece nos demais planos, muito especialmente no intelectual. Talvez eu esteja errado; mas o escritor, ao começar a escrever sobre um tema que estudou profundamente, deve pensar que o leitor médio, que nunca estudou o assunto, se o vier a ler, não será com o fim de aprender alguma coisa com ele, mas sim, ao contrário, para condenar o autor, quando as idéias deste não coincidirem com as vulgaridades que tal leitor tem na cabeça. Se os indivíduos que integram a massa se julgassem especialmente dotados, teríamos apenas um caso de erro pessoal, mas não uma subversão sociológica. A característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte.

[…]

Este é o fato formidável de nosso tempo, descrito sem se ocultar a brutalidade de sua aparência.