domingo, 22 de março de 2015

José Ortega Y Gasset | A barbárie da "especialização"


A tese era que a civilização do século XIX produziu automaticamente o homem-massa. Não convém encerrar esta exposição sem analisar, em particular, a mecânica dessa produção. Desse modo, a tese ganhará em força persuasiva quando concluída.

Essa civilização do século XIX, como já disse, pode ser resumida em duas grandes dimensões: democracia liberal e técnica. Tomemos agora apenas a última. A técnica contemporânea nasce da cópula entre o capitalismo e a ciência experimental. Nem toda técnica é científica. Quem fabricou os machados de Sílex, no período cheleano, carecia de ciência e, no entanto, criou uma técnica. A China atingiu um alto grau de tecnicismo sem ter a menor suspeita da existência da física. Só a técnica moderna da Europa tem uma origem científica, e dessa origem vem seu caráter específico, a possibilidade de um progresso ilimitado. As demais técnicas — mesopotâmica, egípcia, grega, romana, oriental — chegam a um ponto de desenvolvimento que não podem ultrapassar, e, mal o atingem, começam a retroceder numa involução lamentável.

Essa maravilhosa técnica ocidental tornou possível a maravilhosa proliferação da casta européia. Recorde-se o dado de que partiu este ensaio e que, como já disse, encerra de modo latente todas essas meditações. Do século V até 1800, a Europa não consegue ter uma população maior que 180 milhões. De 1800 a 1914, ascende a mais de 450 milhões. Esse salto é único na história humana. Não há como duvidar de que a técnica — junto com a democracia liberal — engendrou o homem-massa no sentido quantitativo da expressão. Mas estas páginas têm tentado mostrar que ele também é responsável pela existência do homem-massa no sentido qualitativo e pejorativo do termo.

Por "massa" — adverti no início — não se entende especialmente o operário; não se designa aqui uma classe social, mas uma classe ou modo de ser homem que acontece hoje em todas as classes sociais, que por isso representa o nosso tempo, no qual predomina e impera. Agora vamos tratar disso com toda a clareza.

Quem exerce o poder social hoje? Quem impõe a estrutura de seu espírito na época? Sem dúvida, a burguesia. Quem, dentro dessa burguesia, é considerado o grupo superior, a aristocracia do presente? Sem dúvida, o técnico: engenheiro, médico, economista, professor, etc., etc. Quem, dentro do grupo técnico, representa-o com maior relevância e pureza? Sem dúvida, o homem de ciência. Se um personagem astral visitasse a Europa, e com a intenção de julgá-la lhe perguntasse por que tipo de homem, entre os que a habitam, preferiria ser julgada, não há dúvida de que a Europa indicaria, com satisfação e certa de uma sentença favorável, seus homens de ciência. Claro que o personagem astral não perguntaria por indivíduos excepcionais, mas procuraria a regra, o tipo genérico "homem de ciência", cume da humanidade européia.

Pois bem: acontece que o homem de ciência atual é o protótipo do homem-massa. E não por casualidade, nem por defeito unilateral de cada homem de ciência, mas porque a própria ciência — raíz da civilização — converte-o automaticamente em homem-massa, isto é, faz dele um primitivo, um bárbaro moderno.

O fato é sobejamente conhecido: já foi consignado inúmeras vezes; mas só articulado no corpo deste ensaio adquire a plenitude de seu sentido e a evidência de sua gravidade.

A ciência experimental inicia-se no final do século XVI (Galileu), consegue se constituir no fim do século XVII (Newton) e começa a se desenvolver no meio do século XVIII. O desenvolvimento de alguma coisa é distinto de sua constituição e está submetido a condições diferentes. Assim, a constituição da física, nome coletivo da ciência experimental, obrigou a um esforço de unificação. Tal foi a obra de Newton e dos demais homens de seu tempo. Mas o desenvolvimento da física iniciou uma tarefa de caráter oposto ao da unificação. Para progredir, a ciência necessitava de que os homens de ciência se especializassem. Os homens de ciência, não ela própria. A ciência não é especialista. Ipso facto deixaria de ser verdadeira. Nem sequer a ciência empírica, tomada na sua integridade, é verdadeira quando separada da matemática, da lógica, da filosofia. Mas o trabalho dentro dela, sim, tem — obrigatoriamente — que ser especializado.

Seria de grande interesse, e de maior utilidade do que parece à primeira vista, escrever a história das ciências físicas e biológicas, mostrando-se o processo de crescente especialização no trabalho dos pesquisadores. Isso mostraria como, geração após geração, o homem de ciência foi se adstringindo, se recluindo num campo de atuação intelectual cada vez mais estreito. Mas isso não seria o mais importante que essa história nos mostraria, mas exatamente o inverso: como em cada geração o científico, por ter que reduzir sua órbita de trabalho, foi progressivamente perdendo o contato com as outras partes da ciência, com uma interpretação integral do universo, que é o único merecedor dos nomes de ciência, cultura, civilização européia.

A especialização começa exatamente numa época que chama de homem civilizado o homem "enciclopédico". O século XIX inicia seus destinos sob a direção de criaturas que vivem enciclopedicamente, embora sua produção já tenha um caráter de especialização. Na geração seguinte, a equação deslocou-se e a especialidade começa a desalojar de dentro de cada homem de ciência a cultura integral. Quando, em 1890, uma terceira geração toma a direção intelectual da Europa, encontramo-nos com um tipo de científico sem exemplo na história. É um homem que,  de tudo o que se deve saber para ser um personagem discreto, conhece apenas uma determinada ciência, e mesmo dessa ciência só conhece bem a pequena parte de que ele é um ativo pesquisador. Chega a proclamar como virtude o fato de não se inteirar de nada que esteja fora da estreita paisagem que cultiva especialmente, e chama de diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber.

O fato é que, restringido à escassez de seu campo visual, consegue realmente descobrir novos fatos e fazer avançar sua ciência, que ele quase não conhece, e com ela a enciclopédia do pensamento, que desconhece conscienciosamente. Como tem sido e continua sendo possível coisa semelhante? Porque convém insistir na extravagância deste fato inegável: a ciência experimental progrediu, em boa parte, devido ao trabalho de homens incrivelmente medíocres, e até menos que isso. Significa que a ciência moderna, raiz e símbolo da civilização atual, acolhe dentro de si o homem intelectualmente médio e lhe permite operar com êxito. A razão disso está naquilo que é, ao mesmo tempo, a maior vantagem e o máximo do perigo da ciência nova e de toda a civilização que esta dirige e representa: a mecanização. Boa parte das coisas que precisam ser feitas em física e em biologia é tarefa mecânica de pensamento que pode ser executada por qualquer um, ou quase. Para a realização de inúmeras pesquisas é possível dividir-se a ciência em pequenos segmentos, encerrar-se num deles e esquecer os demais. A firmeza e a exatidão dos métodos permitem essa transitória e prática desarticulação do saber. Trabalha-se com um desses métodos como com uma máquina, e nem sequer é forçoso, para se obterem resultados abundantes, possuir idéias rigorosas sobre o sentido e fundamento deles. Assim, a maior parte dos científicos impulsionam o progresso geral da ciência, encerrados nas celas de seus laboratórios, assim como a abelha no seu opérculo ou como o cabo do espeto na sua caixa.

Mas isso cria uma casta de homens muito estranhos. O pesquisador que descobre um novo fato da Natureza tem, forçosamente, uma impressão de domínio e segurança em sua pessoa. Aparentemente com certa justiça, considera-se como "um homem que sabe". E, de fato, nele se encontra um pedaço de algo que, junto com outros pedaços não existentes nele, constitui verdadeiramente o saber. Esta é a situação íntima do especialista, que nos primeiros anos deste século chegou ao seu exagero mais frenético. O especialista "sabe" muito bem seu mínimo rincão de universo; mas ignora radicalmente todo o resto.

Temos aqui um precioso exemplar deste estranho homem novo que tentei definir por vários lados e facetas. Disse que era uma configuração humana sem par em toda a história. O especialista serve-nos para reduzir a espécie a sua essência e nos fazer ver todo o radicalismo de sua novidade. Porque antes os homens podiam se dividir, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser incluído em nenhuma dessas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente tudo quanto não faz parte de sua especialidade; tampouco é um ignorante, porque é "um homem de ciência" e conhece muito bem sua porciúncula de universo. Temos que dizer que é um sábio-ignorante, coisa extremamente grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a arrogância de quem em seu campo especial é um sábio.

E, de fato, este é o comportamento do especialista. Em política, em arte, nos usos sociais, em outras ciências, tomará posições de primitivo, de ignorantíssimo; mas as tomará com energia e suficiência, sem admitir — e aí está o paradoxo — especialistas nessas coisas. Ao especializá-lo, a civilização tornou-o hermético e satisfeito dentro de sua limitação; mas essa mesma sensação íntima de domínio e valor o levará a querer predominar fora de sua especialidade.  E o resultado disso é que, mesmo neste caso, que representa um máximo de homem qualificado — especializado — e, portanto, o mais oposto ao homem-massa, ele se comportará sem qualificação e como homem-massa em quase todas as esferas da vida.

Esta advertência não é vaga. Quem quiser poderá observar a estupidez com que pensam, julgam e atuam hoje na política, na arte, na religião e nos problemas gerais da vida e do mundo os "homens de ciência" e é claro que, além deles, médicos, engenheiros, economistas, professores, etc., etc. Essa condição de "não escutar", de não se submeter a instâncias superiores que tenho apresentado reiteradamente como características do homem-massa, chega ao máximo precisamente nesses homens parcialmente qualificados. Eles simbolizam, e constituem em grande parte, o atual império das massas, e sua barbárie é a causa mais imediata da desmoralização européia.

Por outro lado, significam o exemplo mais claro e preciso de como a civilização do último século, abandonada à sua própria inclinação, produziu este rebento de primitivismo e barbárie.

O resultado mais imediato dessa especialização não compensada é que hoje, quando há maior número de "homens de ciência" que nunca, há muito menos homens "cultos" do que, por exemplo, por volta de 1750. E o pior é que, com esses cabos do espeto científico, nem sequer está assegurado o progresso íntimo da ciência, porque esta necessita, de tempos em tempos, como uma regulamentação orgânica de seu próprio crescimento, de um trabalho de reconstituição, e, como já foi dito, isso requer um esforço de unificação cada vez mais difícil, que cada vez envolve regiões mais vastas do saber total. Newton pôde criar seu sistema físico sem saber muita filosofia, mas Einstein precisou saturar-se de Kant e de Mach para poder chegar a sua aguda síntese. Kant e Mach — com esses dois nomes apenas simboliza-se a enorme massa de pensamentos filosóficos e psicológicos que influíram Einstein — serviram para liberar a mente deste e abrir-lhe o caminho para sua inovação. Mas Einstein não é suficiente. A física entra na crise mais profunda de sua história e só poderá salvá-la uma nova enciclopédia mais sistemática que a primeira.

Portanto, a especialização que tornou possível o progresso da ciência experimental durante um século aproxima-se de uma etapa em que não poderá avançar por si mesma se não se encarregar uma geração melhor de lhe construir um espeto mais poderoso.

Mas, se o especialista desconhece a fisiologia interna da ciência que cultiva, muito mais radicalmente ignora as condições históricas de sua longa duração, isto é, como devem estar organizados a sociedade e o coração do homem para que possam continuar existindo pesquisadores. A diminuição de vocação científica observada nestes anos — e a que já me referi — é um sintoma preocupante para todo aquele que tem uma idéia clara do que é civilização, a idéia que costuma faltar ao típico "homem de ciência", cume de nossa atual civilização. Também ele pensa que a civilização está aí, simplesmente, como a crosta terrestre e a selva primigênia.