quinta-feira, 15 de outubro de 2015

«O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi feito; e ajuda-o a eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado de seu empreendimento. Por que hesitar ante uma expedição marítima, quando o Herói mítico já a efetuou num Tempo fabuloso? Basta seguir o seu exemplo. De modo análogo, por que ter medo de se instalar num território desconhecido e selvagem, quando se sabe o que é preciso fazer? Basta, simplesmente, repetir o ritual cosmogonico, e o território desconhecido ( = o "Caos") se transforma em "Cosmo", torna-se uma imago mundi, uma "habitação" ritualmente legitimada. A existência de um modelo exemplar não entrava o processo criador. O modelo mítico presta-se a aplicações ilimitadas.»

Mircea Eliade, Mito e Realidade

«[...] o sagrado é o real por excelência. Tudo o que pertence à esfera do profano não participa do Ser, visto que o profano não foi fundado ontologicamente pelo mito, não tem modelo exemplar. Conforme não tardaremos a ver, o trabalho agrícola é um ritual revelado pelos deuses ou pelos Heróis civilizadores. É por isso que constitui um ato real e significativo. [...] Tudo quanto os deuses ou os antepassados fizeram – portanto tudo o que os mitos contam a respeito de sua atividade criadora – pertence à esfera do sagrado e, por conseqüência, participa do Ser. Em contrapartida, o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é pois uma atividade vã e ilusória, enfim, irreal.»

Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano

«Cada um dos exemplos citados [...] revela a mesma concepção ontológica "primitiva": um objeto ou um ato torna-se real apenas enquanto serve para imitar ou repetir um arquétipo. Assim, a realidade é alcançada unicamente por intermédio da repetição ou da participação; tudo o que carece de um modelo exemplar é "insignificante", isto é, está destituído de realidade. Desse modo, os homens demonstram uma tendência no sentido de se tornarem arquetípicos e paradigmáticos. Essa tendência pode até parecer paradoxal, no sentido de que o homem de uma cultura tradicional se vê como uma pessoa real apenas até o ponto em que deixa de ser ele próprio (para um observador moderno), satisfazendo-se com a imitação e a repetição dos gestos de outro. Ou seja, ele se vê como uma pessoa real, isto é, como "ele próprio de verdade", apenas e unicamente até o ponto em que deixa de ser isso. Daí, pode se afirmar que essa ontologia "primitiva" tem uma estrutura platônica; e, neste caso, Platão poderia ser encarado como o destacado filósofo da "mentalidade primitiva", isto é, como o pensador que conseguiu dar coerência e validade filosófica aos modos de vida e comportamento da humanidade arcaica. Obviamente, isso em nada diminui a originalidade de seu gênio filosófico; porque ele merece toda a nossa admiração por seus esforços visando justificar teoricamente essa visão da humanidade arcaica, através dos meios dialéticos que a espiritualidade de sua época colocava à sua disposição.»

Mircea Eliade, Mito do Eterno Retorno