quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Mircea Eliade sobre Freud

«Para Freud a religião, bem como a sociedade humana e a cultura em geral tiveram inicio com um assassino primordial. Freud aceitava o ponto de vista de Atkinson de que as comunidades mais antigas consistiam em “um macho adulto e um certo número de fêmeas e indivíduos imaturos, sendo os machos existentes entre estes últimos afastados pelo chefe do grupo à medida que atingiam idade suficiente para despertar o seu ciúme”. Os filhos expulsos acabavam por matar o pai, comiam-no e apropriavam-se das fêmeas. Freud escreve: “O fato de comerem também a sua vítima é uma coisa natural entre os selvagens canibais (...). O banquete totêmico, quiçá o primeiro festim que a humanidade celebrou, era a repetição, o festival da memória, deste ato criminoso notável, com o qual tanta coisa teve início – a organização da sociedade, as restrições morais e a religião”. Como observa Wilhelm Schmidt, Freud “sustenta que Deus é nada mais nada menos que o Pai físico sublimado dos seres humanos; consequentemente, no sacrifício totêmico é o próprio Deus que é morto e sacrificado. Esta chacina do pai-deus é o antigo pecado original da humanidade. Esta culpa de morte é expiada pela morte sangrenta de Cristo”.

A interpretação que Freud faz da religião foi repetidamente criticada e inteiramente rejeitada pelos etnólogos, de W. H. Rivers e F. Boas a A. L. Kroeber, B. Malinowski e W. Schmidt. Compilando as objecções etnológicas mais importantes às extravagantes reconstruções apresentadas em Totem und Tabu, Schmidt observa que (1) o totemismo não se verifica nos primórdios da religião; (2) não é universal, nem todos os povos passaram por ele; (3) Frazer já tinha provado que, das muitas centenas de tribos totêmicas, apenas quatro conhecem um rito que se aproxima do cerimonial de matar e comer o “totem-deus” (um rito que Freud supunha ser uma característica invariável do totemismo); além disso, este rito nada tem a ver com a origem do sacrifício, dado que o totemismo não ocorre de todo nas culturas mais antigas; (4) “os povos pré-totêmicos nada conhecem do canibalismo, e o parricídio entre eles seria uma pura impossibilidade, psicológica, sociológica e eticamente”; e (5) “a forma da família pré-totêmica e, consequentemente, da família humana mais antiga, de que esperamos conhecer algo através da etnologia, não consiste nem numa promiscuidade geral nem num casamento de grupo, nenhum dos quais, segundo a decisão dos principais etnólogos, existiu jamais”.
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«É claro que há que distinguir a grande contribuição de Freud para o saber, isto é, a descoberta do inconsciente e da psicanálise, da ideologia freudiana, que é apenas mais uma entre as inúmeras ideologias positivistas. Freud também pensava que, com o auxilio da psicanálise tinha atingido a fase “primordial” da cultura e religião humanas. Como vimos, ele identificou a origem da religião e da cultura com um assassínio primevo, mais exatamente com o primeiro parricídio. Para Freud, Deus era apenas o pai físico sublimado que era morto pelos seus filhos expulsos. Esta espantosa explicação foi universalmente criticada e rejeitada por todos os etnólogos responsáveis. Mas Freud nem renunciou à sua teoria nem a modificou. Provavelmente pensou ter encontrado provas do assassínio de Deus Pai entre os seus pacientes vienenses. Mas esta “descoberta” equivalia a dizer que alguns homens modernos começavam a sentir as consequências do seu “deícidio”. Tal como Nietzsche anunciara, trinta anos antes da publicação de Totem und Tabu, Deus estava morto; ou, mais precisamente, fora morto pelo homem. Talvez Freud estivesse a projetar inconscientemente a neurose de alguns dos seus pacientes vienenses num passado mítico.»

Mircea Eliade - "Origens"