quinta-feira, 15 de outubro de 2015

A criação da relva | Luiz Gonzaga de Carvalho Neto

«Se vocês olharem no Gênesis o relato da criação da relva, vocês vão entender também algo mais sobre o judeu. Então lá no terceiro dia Deus disse "reúna-se a massa das águas num só volume e faça surgir o elemento seco, a terra"... não é isso? Ele junta a massa das águas num só continente para surgir a terra. E aí Ele diz "faça da terra surgir então a erva verde de todos os tipos". Sendo esse sentimento de contentamento, que é um misto de contentamento e gratidão, que é o que o sujeito sente quando ele é aliviado de um calor intenso, quando ele sai da areia e vai para a grama, vamos dizer... é o sentimento característico do judeu em relação ao mundo. Inúmeros místicos judeus dizem que a grama é a criatura mais perfeita. Os místicos judeus, eles passavam horas e horas sentados na grama e olhando para ela para entendê-la. Eles diziam: "a grama é a única das criaturas que não fere os mandamentos de Deus". É sempre bom estar na grama, é sempre bom ter grama perto de você. Existe um eco desse pensamento judaico numa das escrituras cristãs lá no apocalipse. Tem um dia então que Deus manda um anjo descer uma praga sobre as plantas na Terra e ele fala: "mas não fira a grama". Deus vai destruir um terço das árvores, um terço das frutas, "mas não fira a relva". Vocês lembram disso aí? Além disso, a grama está sempre abaixo de todas as coisas, o que é uma espécie de perfeição de humildade. É fácil você não notar que a grama está lá, no entanto, se ela não estivesse ela faria uma falta tremenda, você perceberá que algo está faltando. Não é isso? Se ela estiver não é nada, é o só o chão onde você pisa, mas se ela não estiver, algo se tornou mais pobre. Tá claro isso aí? Pois bem, é assim que o povo de Israel se sente diante do mundo. Quando eles estão lá, você pensa que eles são o chão em que você pisa, mas se eles não estiverem, farão uma falta tremenda. Existe algo sobre o ser humano que você não vai entender se não existir o povo de Israel. Então, voltando um pouquinho, do ponto de vista judaico a relva surge justamente quando se contraem as águas numa só região, quando as águas são delimitadas e cercadas. Antes, o mundo inteiro estava coberto de água, então as águas não têm um limite. Aí elas são reunidas numa área limitada, delimitada, você tem o limite das águas e fora delas tem a terra. Veja bem, a nossa imaginação tende a ver as coisas do ponto de vista contrário: a terra se estende e ela tem um limite a partir do qual é a água. Mas se você pensar que o mundo era originariamente água você vai ver que o limite não é o limite da terra, é o limite da água. É a água que foi contida numa área limitada e surgiu a terra. Essa limitação das águas é para o judeu então um símbolo da limitação da sua liberdade em nome de uma relação com Deus. Veja bem, a esfera dos seus desejos é indefinida e ilimitada. Sua psique pode desejar qualquer coisa em qualquer circunstância. Então ela é comparável a essa massa de águas que cobre tudo. Aí você restringe essa massa e dá um limite para ela. Quando você dá esse limite surge a terra e da terra surge naturalmente a vegetação. Tá claro isso aí? Agora, se você observar naturalmente... veja bem, o povo hebreu vivia na natureza, e numa natureza hostil. Então ele percebia, por exemplo, que no deserto você sente claramente toda a força do sol. Mas se você reunir as águas, surge a vegetação naturalmente. Mesmo a força do sol não é capaz de anular a força da vegetação. Então a vegetação passa a representar para o judeu justamente o quê? O conjunto de bens espirituais e materiais, de coisas que te deixam contente que surgem justamente da restrição da sua liberdade numa determinada relação. Tá claro isso aí? É só você lembrar do exemplo de uma relação pessoal de dois indivíduos humanos: existem inúmeros traços que distinguem um indivíduo que você só percebe na medida em que você restringe a sua liberdade para manter uma relação com aquele indivíduo. Você só descobre por causa disso. [Traços] que surgem como uma decorrência natural dessa sua restrição voluntária da sua liberdade. Até então, até o momento dessas restrições você não conhece a pessoa, você conhece só os seus desejos em relação à pessoa. A mesma coisa vale com relação a Deus. Enquanto o sujeito não faz esse conjunto de restrições ele não conhece Deus, ele conhece os desejos dele em relação a Deus. Ele não sabe como é Deus, ele só sabe o que ele quer de Deus. Justamente o que caracteriza o judeu, o que caracteriza ele é a fé inabalável de que dessa restrição voluntária só surge o bem, só surgem coisas que aliviam e facilitam a sua vida, por mais difícil que a restrição possa parecer de início. É por isso que eles encaram os sofrimentos deles como povo no decorrer da história como restrições temporárias à sua liberdade para que possa se destacar e surgir um outro aspecto de Deus e da realidade para eles. Então existem duas idéias que dominam a mente dele [o povo judeu]. Primeiro a idéia de que tudo tem um sentido que se explica depois, na história mesmo. Veja bem que para o budista e para o hindu o sentido está fora da história, o sentido é supra-histórico, não é algo que se revela depois, é algo que sempre existiu e que está num plano fora do tempo. Para o povo hebreu não, todo e qualquer sofrimento que você tem agora tem um sentido que se revela depois no tempo. Por quê? Porque é uma restrição à liberdade para que você conheça melhor a pessoa com quem você está se relacionando. É fácil de perceber isso: se você conhece uma pessoa hoje, a primeira coisa que ela faz que te desagrada, você não quer ver essa pessoa nunca mais. Você nunca vai saber como era aquela pessoa. Você não tem a menor idéia do que ela tinha para oferecer, porque você olhou só a massa de desejos que você tinha em relação a ela e viu que essa massa de desejos não está contente. Aí o judeu vai te dizer "olha, é o seguinte meu filho, você não aprendeu uma lição sobre a vida". Essa massa de desejos não tem um limite por si mesma, então não é possível contentá-la. O único jeito de contentá-la é criando um limite para ela. Então o que acontece? Eles, nessa relação com Deus, eles descobriram o segredo da prosperidade, tanto espiritual quanto material. Eles descobriram: "olha, o único jeito de perceber como as coisas realmente são é restringindo seus desejos voluntariamente. E quando você percebe como as coisas são, você percebe que as coisas são muito boas. Então cada episódio, cada capítulo da história do povo hebreu mostra justamente isso: uma sequência de sofrimentos que restrigem a liberdade deles até eles aceitarem aqueles sofrimentos justamente como um modo de restrição da sua liberdade para se relacionar com Deus. Aí a realidade se abre para eles, e ela se abre justamente como um tapete de relva, uma paisagem maravilhosa.»



Luiz Gonzaga de Carvalho Neto - As Religiões do Mundo I, Aula 9