Veda a constituição, de todo, ali, como aqui, aos poderes federais qualquer aliança entre a igreja, e o estado: circunvala entre êste e aquela a separação mais completa. Mas os outros mais solenes do govêrno invocam o nome de Deus. Os generais em serviço de guerra imploram, diante das tropas, “a bondade tutelar dessa Providência que encaminha indivíduos e nações”. A voz do presidente se reúne todos os anos, em dia certo, à nação inteira, a render graças ao Eterno. As sessões do Congresso, nas suas duas câmaras, se abrem e encerram diàriamente com as preces de um sacerdote. O senado tem o seu capelão; tem o seu a câmara dos representantes, um e outro eleitos por essas duas assembleias. Têm-nos, ainda, nomeados pelo presidente, as prisões, os hospícios de alienados, as escolas militares, o exército e a marinha, até vinte e quatro para esta, e para aquêle trinta e quatro. A propriedade eclesiástica não se tributa, no distrito de Colúmbia, nem nos estados. O juramento, nas instituições federais, como nas estaduais, se difere sôbre a escritura sagrada aos que não a rejeitam. As leis da União, como as dos Estados, consagram o descanso dominical. Numa das suas ordens do dia, Lincoln, como general em chefe do exército e da armada, no meio da terrível guerra civil em que periclitou a existência da União, impunha rigorosamente às suas fôrças a obediência a êsse preceito. “O general espera e confia”, dizia êle, “que cada oficial e cada praça buscarão viver como convém a soldados cristãos, afanados em lutar pelos mais caros direitos de sua terra”. Nas escolas neutras, enfim, o horário profano abre espaço ao ensino religioso, distribuído pelos ministros vários cultos nos próprios recintos escolares.
Ali não se divisa nesses fatos o
mínimo agravo à secularidade legal das instituições. O que lá se não
toleraria, nem a nossa constituição tolera, é estabelecer distinções
legais entre confissões religiosas, sustentar a instrução ou o culto
religioso à custa de impostos, obrigar à freqüência dos templos ou à
assiduidade nos deveres da fé, criar embaraços de qualquer natureza ao
exercício da religião, contrariar de algum modo a liberdade de
consciência, a expressão das crenças ou a manifestação da incredulidade,
nos limites do respeito às crenças e à liberdade alheias. Mas “nenhum
princípio de direito constitucional se quebranta”, diz um grande
jurisconsulto americano, o juiz Cooley, “quando se fixam dias de ação de
graças e jejum, quando se nomeiam capelães para o exército e a marinha,
quando se abrem as sessões legislativas, orando, ou lendo a Bíblia,
quando se anima o ensino religioso, favorecendo com a imunidade
tributária as causas consagradas ao culto”.
Vêde se anda fora da lógica o bom
senso americano. O Estado exige de todos os cidadãos o imposto de
sangue. Ninguém lho pode recusar, a título de que o seu credo o
aborreça. Ao reclamo dêsse dever se alistam os exércitos e tripulam as
esquadras. Mas êsses lidadores, que se aprestam a morrer, nos campos de
batalha, ou nas vagas do oceano, pela segurança, pela integridade, pela
honra nacional, não abjuraram, vestindo as armas, a consciência
religiosa. Levam consigo a sua fé, o seu Deus, as suas esperanças na
imortalidade, o culto de seu país. Êste lhes lembra todos os domingos o
sacrifício cristão, lhes fala, nas tribulações, do confôrto espiritual,
lhes evoca, em presença da morte, os compromissos eternos de sua alma.
Quem lhes há de ministrar, nos quarteis, nas escolas militares, nos
vasos de guerra, os ofícios divinos? Quem, no leito do hospital, ou
entre o fogo dos combates, lhes dará os socorros do céu? Quem? Se a lei
fechar os estabelecimentos militares aos ministros do Evangelho? Se as
fôrças, que marcham para a guerra, não se acompanharem de ministros da
religião? Se a rigidez das obrigações militares não conhecer os
mandamentos supremos da vida cristã? Há de o soldado fiel pagar, do
sôldo, ou da etapa, os seus capelães? Pode o soldado moribundo, na
tenda, ou no campo, mandar por êles ao povoado? De onde acudirá o
valimento apostolar ao marinheiro, que expira na solidão dos mares, ao
conscrito que agoniza nas refregas de uma campanha entre as armas da
pátria e as do inimigo? Se o marinheiro e o soldado têm direito à
medicina do corpo, e ao estado incumbe o dever de lha suprir, como não
terá o soldado, o marinheiro à cura da alma, e ao govêrno poderá ficar o
arbítrio de não lha dar? A que título o civismo, vestindo-me a blusa,
ou a farda, me seqüesta às relações religiosas, e, sôbre me exigir o
sacrifício da vida, me impõe a morte do ateu?
Assim banir do quadro militar, em
nome da liberdade, o elemento religioso, é estabelecer, debaixo dêsse
nome, a mais odiosa das servidões, e pagar com a ingratidão suprema os
serviços do marinheiro e do soldado. Os americanos abominariam essa
falsa igualdade; porque homens realmente livres não se pagam de fórmulas
mentidas, e acima de tudo execram a opressão, que se abrigue sob
hipocrisias de especioso liberalismo. Não quiseram, pois, animalizar o
homem de guerra. Viram, claramente, viram, que a multidão armada, sem o
freio do respeito cristão, é como as feras domadas, que acabam
fatalmente por devorar os domadores.
Estudem o desenvolvimento da
criminalidade militar entre nós, e hão de verificar, tenho por certo,
que delinqüencia adquiriu, nessa esfera, expansão notável e crescente,
desde que se varreu dos quartéis a influência civilizadora do culto. Os
nossos exércitos de mar e terra constituem, hoje, a êste respeito, pela
mais errada inteligência das nossas liberdades constitucionais, uma
excessão absurda entre os povos civilizados. Das coisas sérias, em nossa
terra, por via de regra, não se cogita. Mas o soldado brasileiro há de
sentir um dia que o estão desnaturando, e tomará nas próprias mãos,
pacífica, mas resolutamente, a causa da sua reconciliação religiosa. Ou
então, ai de nós! Quando o ateísmo de fuzil e baioneta se inflamar nas explosões da crueldade.
Nos Estados Unidos não se conhece
êsse risco; porque o seu senso político, incapaz de tais eclipses,
sempre lhes mostrou que a disciplina da terra não se mantém sem a
disciplina do céu, e o seu senso liberal os convenceu de que brutalizar o
uniforme no abandono da religião era conferir à incredulidade os
privilégios recusados ao culto.
Aí está porque o constitucionalismo
americano repele essa uniformidade atéia, cuja superstição professa a
república no Brasil, e que não estava decerto nos intuitos dos seus
fundadores. Desde 1876 que eu escrevia e pregava contra o consórcio da
Igreja com o Estado; mas nunca o fiz em nome da irreligião: sempre, em
nome da liberdade. Ora, liberdade e religião são sócias, não inimigas.
Não há religião sem liberdade. Não há liberdade sem religião. “O
despotismo é que passará sem a fé: a liberdade não passa”, dizia
Tocqueville, edificado pelo espetáculo dos Estados Unidos. “A religião”,
insistia, “é muito mais necessária nas repúblicas do que nas
monarquias, e muito mais ainda nas repúblicas democráticas do que em
tôdas as demais”. Como não houvera de perecer a sociedade, se,
afroixando o laço político, não estreitasse o vínculo moral? E que será
de um povo, senhor de si mesmo, se não for submisso a Deus? É a mesma
impressão que o abalava, a êsse grande pensador político, ao estudar O Antigo Regime e a Revolução:
“O povo, se quiser ser livre, há de ter convicções religiosas. Em não
tendo fé, servirá”. Essas as idéias que nos propeliam, há dezoito anos,
quando vimos o padroado imperial encarcerar os bispos. Assim como não
admitíamos o Estado cativo à Igreja, não podíamos admitir a Igreja
cativa ao Estado.
Foi sob êsse pensamento que
adotamos a constituição de 1891. Tínhamos, então, os olhos fitos nos
Estados Unidos; e o que os Estados Unidos nos mostravam, era a liberdade
religiosa, não a liberdade materialista. Naquele país a incredulidade
possui também o seu grupo, que advoga a tributação dos cultos, a
supressão dos capelães, a abolição de todos os serviços religiosos
custeados pelo Tesouro, a extinção do juramento, a substituição, nas
leis, da moral cristã pela moral natural. Mas êsse programa, formulado
ali há trinta anos, definha enquistado na seita que o concebeu. “Nós
somos um povo cristão”, diz o juiz Kent, um dos patriarcas da
jurisprudência americana “e a nossa moralidade política está
profundamente enxertada no cristianismo”.
Êsse fato precedeu à constituição,
ali e aqui. Aqui, como ali, êsse fato subsiste sob a constituição. Ela o
não podia destruir, porque, lá e cá era, nas duas nações, a grande
realidade espiritual. Na república Norte Americana a superfície moral do
país estava mais ou menos igualmente dividida entre uma variedade
notável de confissões religiosas. No Brasil o catolicismo era a religião
geral; o protestantismo, o deísmo, o positivismo, o ateísmo, exceções
circunscritas. De modo que, enquanto nos Estados Unidos a igualdade
religiosa constituía uma necessidade sentida, mais ou menos, no mesmo
grau, por tôdas as comunhões, entre nós ela representava tão-sòmente
aspirações da minoria. A liberdade de cultos veio satisfazer, em boa
justiça, à condição opressiva dessas dissidências maltratadas pela
exclusão oficial, mas não invertê-la contra a consciência da maioria.
Se, nos Estados Unidos, avultava no maior relêvo “o fato de que o
cristianismo era, e sempre foi, a religião popular” (são palavras de um
magistrado americano), no Brasil êsse fato tinha vulto menos
proeminente.
As constituições não se adotam para
tiranizar, mas para escudar a consciência dos povos. “A nossa
constituição”, diz um escritor americano, que tratou ex-professo
o assunto, “a nossa constituição não criou a nação, nem a religião
nacional. Achou-as preexistentes, e estabeleceu-se com o intuito de as proteger
sob uma forma republicana de govêrno”. Ora, a condição de nós outros é
idêntica, por êste lado, à dos Estados Unidos. Antes da república
existia o Brasil, e o Brasil nasceu cristão, cresceu cristão, cristão
continua a ser até hoje. Logo, se a república veio organizar o Brasil, e
não esmagá-lo, a fórmula da liberdade constitucional, na república,
necessàriamente há de ser uma fórmula cristã. As instituições de 1891
não se destinaram a matar o espírito religioso, mas a depurá-lo,
emancipando a religião do jugo oficial. Como aos americanos, pois, nos
assiste a nós o jus de considerar o princípio cristão como elemento
essencial e fundamental do direito brasileiro. Nessa verdade se encerram
tôdas as garantias da liberdade e tôdas as necessidades da fé.
Adotando êste regime, escolhemos
surgidoiro, onde nos abrigássemos dos temporais, que, na Europa, com
escândalo das almas e ruínas dos Estados, convulsam o mundo político e o
mundo espiritual.
(Discurso pronunciado na Colação de Grau de Bacharel em Ciências e Letras— Colégio Anchieta, Friburgo, 1903. P. 18).