"Se observarmos o desenvolvimento da filosofia no Oriente, como
entre hindus e chineses, notamos desde logo não oferecerem as suas obras
solução para as aporias. Os orientais, por nós tantas vêzes
considerados como tendentemente colectivistas, são, no sector religioso,
como no filosófico, eminentemente individualistas, enquanto os chamados
ocidentais, que são eminentemente individualistas no sector
histórico-social, são colectivistas no sector da filosofia e da
religião. Enquanto no Oriente, o pesquizador deve prosseguir sòzinho o
seu caminho (o seu Tau, para os chineses), em busca da verdade, pois o
mestre apenas lhe aponta a vereda, mas não lhe oferece a solução, o que
leva a filosofia tornar-se esotérica, no ocidente, o mestre é um guia,
que acompanha até a última meta, e jamais abandona o pesquizador, pois
ambos seguem juntos em busca do resultado final, e, por êsse motivo, a
filosofia torna-se exotérica, pois é publicada tôda a experiência do
mestre.
Vemo-lo nas palavras de Confúcio (apenas para
exemplificar), quando diz não admitir como discípulo senão aquêle a
quem, dada apenas uma quarta parte do que deseja expressar, é capaz de
revelar a si mesmo as três quartas partes restantes. O mestre não diz
tudo, apenas sugere, apenas aponta. Pelo menos é o que ressalta da obra
exotérica dêsses pensadores, o que nos demonstra que os exames mais
profundos e as especulações mais demoradas eram realizadas secretamente,
esotèricamente. E que há especulações profundas no pensamento dos povos
orientais pode-se comprovar por certas afirmativas, que não poderiam
ser formuladas senão após longas especulações. Êste é um tema que
pretendemos desenvolver, creditando-lhe inúmeras contribuições no
intuito de desvanecer um preconceito, muito ocidental, de que só no
ocidente se é, e se foi capaz de fazer filosofia.
Platão era um
iniciado, e revela o espírito iniciático em seus diálogos. A situação
aporética em que deixa o leitor é um sinal. Êle sabia quais as soluções.
Mas há aquelas verdades que só se transmitem de ouvido para ouvido,
expressões tão contumazmente usadas pelos pensadores orientais, e que,
em Platão, também estão implícitas. Quando Sócrates procurava levar à
rua a filosofia (o que Nietzsche interpretou como um 'vulgarismo' e, por
isso, o abominava), era movido por um intuito muito justo. Convém não
esquecer que Sócrates era um pitagórico, mas de um grau não pertencente
aos pitagóricos menores. E um dos mais anelados desejos de Pitágoras era
que a sua ordem, embora iniciática, tornasse cada vez mais acessível ao
maior número as conquistas que haviam sido obtidas através das longas
especulações, realizadas pelos filósofos da escola. Se no período de
Crótona, houve um iniciatismo pitagórico, não havia da parte do mestre o
desejo de continuá-lo nos graus inferiores com o rigorismo que então se
observava. Apenas era uma tomada de posição, que as circunstâncias
histórico-sociais exigiam, mas que deveria ser modificada, logo que
fôsse possível levar ao maior número os estudos filosóficos e
científicos. Basta que se preste atenção às condições histórico-sociais
da Magna Grécia e da península helênica, e o período das invasões
persas, para que se compreenda que muitas das idéias fundamentais dos
pitagóricos não poderiam ser levadas ao maior número, pois colocavam-se
em oposição a um conjunto de idéias, que formavam as bases da
esquemática política e social da época. Não esqueçamos que a Grécia é
rica de perseguições aos seus filósofos, e as sofridas por Empédocles,
Anaximandro, Sócrates, Platão e Aristóteles, para citar apenas os mais
famosos, são exemplos eloqüentes das dificuldades que encontrava o
pensamento filosófico para exteriorizar-se, como o desejavam os seus
principais cultores. Não é de admirar, portanto, que muita conquista do
pensamento permanecesse esotérica, o que cabe à exegese moderna revelar.
Complementando o que acima dissemos, pode-se observar que, do
Renascimento para cá, há uma tendência, no ocidente, cada vez maior, de
tornarem exotéricas, tanto quanto possível, as conquistas do pensamento.
O ocidental, tão acusado de individualismo, procura comunizar,
socializar o pensamento, e o mestre, no ocidente, é um companheiro, um
verdadeiro socius do discípulo, cujas lutas e dificuldades êle procura
aminorar e abrandar."
O Um e o Múltiplo em Platão