"[…]a ‘brava Clarice’, como ele a chama, se é capaz de reconhecer com tanta sinceridade as fraquezas humanas que Lecter nela desvenda, ignora, no entanto, a secreta identidade superior que ele descobriu por trás delas. Por isso ele pode continuar brincando de desprezá-la e enganá-la pela frente, enquanto em segredo lhe devota veneração e serviço. O Diabo também é servo de Deus, ainda que a seu modo ambíguo e recalcitrante; cioso de sua fama de rebelde, o velho embrulhão procura salvar as aparências. A ambigüidade de servir o bem com a pior das intenções é aliás um dos seus traços definidores, e ela o faz, tradicionalmente, antes uma personagem de farsa que de tragédia. A literatura universal não deixou de explorar isso abundantemente, de Marlowe e Goethe até a nossa literatura de cordel (Peleja de Manuel Riachão contra o Diabo) e o teatro popular de Ariano Suassuna (Auto da Compadecida; A Pena e a Lei). É dessa mesma ambigüidade que emana o sutil encanto que enxergamos no monstruoso Lecter; como bem observou Anthony Hopkins na sua entrevista, ‘o diabo tem senso de humor’: quando o terrível ultrapassa certa medida, torna-se engraçado. É um rebuscado pedantismo ir buscar razões psicanalíticas para explicar o atrativo do Diabo, quando se trata apenas de um topos (um lugar-comum ou esquema repetível) da literatura universal, o qual sempre funciona quando usado com arte.
Clarice, por seu lado, não se ilude quanto a Lecter. Quando um
ascensorista lhe pergunta se ele é um vampiro, ela responde que ‘não há
um nome para o que ele é’. O que não tem nome não tem essência, o que é
um modo de dizer que não é nada. Não é coincidência que esta fala
anteceda imediatamente a cena em que Lecter recomenda a Clarice ‘ater-se
ao essencial, desprezando o acidental’. Segundo uma antiqüíssima
teodicéia, o mal não é propriamente um ser, mas algo como o efeito
acidental da confluência inoportuna de bens de diferente espécie (por
exemplo, é bom amar uma mulher e é bom ter um amigo; mas pode acontecer
de amarmos a mulher do amigo). O mal é uma ‘relação’, não uma
‘substância’; uma ‘sombra’, não um ‘corpo’.
[…]
Em sua
lição de Lógica sobre a essência e o acidente, Lecter cita Marco
Aurélio. O imperador romano foi um dos grandes filósofos do estoicismo,
escola que pregava o abstine et sustine: desapego e firmeza. Não é esta a
única referência estóica, no filme. Logo no começo, Clarice aparece
treinando num bosque aos fundos da sede do FBI em Quantico. Na entrada
do bosque, três cartazes de madeira cravados nas árvores exortam o
aprendiz de polícia a suportar a dor, a agonia e o sofrimento. Um quarto
cartaz acrescenta à mensagem estóica o mandamento cristão: Ame. Duas
gotas de estoicismo num só filme são o bastante para despertar
curiosidade. Caso o Dr. Hannibal Lecter não seja um intelectual
brasileiro, que cita sem ler, valerá a pena darmos uma espiada nesse
Marco Aurélio.
VII. Estoicismo e cristianismo
A mistura de
mandamentos estóicos e cristãos não é estranha. Desde cedo os filósofos
cristãos perceberam o valor da ética estóica e trataram de absorvê-la
no Cristianismo. Marco Aurélio dizia, por exemplo, que o aspirante a
sábio não deve fugir do mal, mas habituar-se a olhá-lo de frente para
neutralizá-lo, tornando-se imune ao seu fascínio. Do alto de sua
apatheia (‘ausência de emoções’), o sábio realizado poderá então
extinguir o mal pela força do seu olhar objetivo e sereno, que chama as
coisas pelos seus verdadeiros nomes, sem nada acrescentar nem tirar (é a
‘simplicidade’ intelectual, mencionada por Lecter). Mas, no fundo da
apatheia, o sábio deve sempre conservar uma atitude de ‘clemência
compreensiva’. É uma espécie de bondade ou compaixão intelectual, não
emotiva. Consiste em estar aberto à compreensão de tudo, até mesmo do
que é vil e repugnante, mas sem deixar-se influenciar emocionalmente.
Apatheia e ‘clemência compreensiva’ são justamente os termos mais
adequados para descrever a atitude de Clarice ante Hannibal Lecter; ela
não o odeia, não o teme, não o ama, não o despreza; ela o observa e
ouve, sem se fechar a nada nem se deixar subjugar por nada do que ele
diz ou faz. Ela sustenta firmemente (sustine et abstine) sua posição
diante de Lecter, sem se afastar um só milímetro da clemência
compreensiva, por um lado, e, por outro, da fidelidade ao dever. O que
equilibra os dois pratos da balança estóica, no fundo, é a compaixão
pelas vítimas de Buffalo Bill: os cordeiros que ela deseja salvar.
Clarice personifica a síntese de estoicismo e cristianismo, anunciada
pelos cartazes do bosque."
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Completo: