«O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi
feito; e ajuda-o a eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao
resultado de seu empreendimento. Por que hesitar ante uma expedição
marítima, quando o Herói mítico já a efetuou num Tempo fabuloso? Basta
seguir o seu exemplo. De modo análogo, por que ter medo de se instalar
num território desconhecido e selvagem, quando se sabe o que é preciso
fazer? Basta, simplesmente, repetir o ritual cosmogonico, e o território
desconhecido ( = o "Caos") se transforma em "Cosmo", torna-se uma imago
mundi, uma "habitação" ritualmente legitimada. A existência de um
modelo exemplar não entrava o processo criador. O modelo mítico
presta-se a aplicações ilimitadas.»
Mircea Eliade, Mito e Realidade
«[...] o sagrado é o real por excelência. Tudo o que pertence à esfera
do profano não participa do Ser, visto que o profano não foi fundado
ontologicamente pelo mito, não tem modelo exemplar. Conforme não
tardaremos a ver, o trabalho agrícola é um ritual revelado pelos deuses
ou pelos Heróis civilizadores. É por isso que constitui um ato real e
significativo. [...] Tudo quanto os deuses ou os antepassados fizeram –
portanto tudo o que os mitos contam a respeito de sua atividade criadora
– pertence à esfera do sagrado e, por conseqüência, participa do Ser.
Em contrapartida, o que os homens fazem por própria iniciativa, o que
fazem sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é pois uma
atividade vã e ilusória, enfim, irreal.»
Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano
«Cada um dos exemplos citados [...] revela a mesma concepção ontológica
"primitiva": um objeto ou um ato torna-se real apenas enquanto serve
para imitar ou repetir um arquétipo. Assim, a realidade é alcançada
unicamente por intermédio da repetição ou da participação; tudo o que
carece de um modelo exemplar é "insignificante", isto é, está destituído
de realidade. Desse modo, os homens demonstram uma tendência no sentido
de se tornarem arquetípicos e paradigmáticos. Essa tendência pode até
parecer paradoxal, no sentido de que o homem de uma cultura tradicional
se vê como uma pessoa real apenas até o ponto em que deixa de ser ele
próprio (para um observador moderno), satisfazendo-se com a imitação e a
repetição dos gestos de outro. Ou seja, ele se vê como uma pessoa real,
isto é, como "ele próprio de verdade", apenas e unicamente até o ponto
em que deixa de ser isso. Daí, pode se afirmar que essa ontologia
"primitiva" tem uma estrutura platônica; e, neste caso, Platão poderia
ser encarado como o destacado filósofo da "mentalidade primitiva", isto
é, como o pensador que conseguiu dar coerência e validade filosófica aos
modos de vida e comportamento da humanidade arcaica. Obviamente, isso
em nada diminui a originalidade de seu gênio filosófico; porque ele
merece toda a nossa admiração por seus esforços visando justificar
teoricamente essa visão da humanidade arcaica, através dos meios
dialéticos que a espiritualidade de sua época colocava à sua
disposição.»
Mircea Eliade, Mito do Eterno Retorno