«Se vocês olharem no Gênesis o relato da criação da relva, vocês vão
entender também algo mais sobre o judeu. Então lá no terceiro dia Deus
disse "reúna-se a massa das águas num só volume e faça surgir o elemento
seco, a terra"... não é isso? Ele junta a massa das águas num só
continente para surgir a terra. E aí Ele diz "faça da terra surgir então
a erva verde de todos os tipos". Sendo esse sentimento de
contentamento, que é um misto de contentamento e gratidão, que é o que o
sujeito sente quando ele é aliviado de um calor intenso, quando ele sai
da areia e vai para a grama, vamos dizer... é o sentimento
característico do judeu em relação ao mundo. Inúmeros místicos judeus
dizem que a grama é a criatura mais perfeita. Os místicos judeus, eles
passavam horas e horas sentados na grama e olhando para ela para
entendê-la. Eles diziam: "a grama é a única das criaturas que não fere
os mandamentos de Deus". É sempre bom estar na grama, é sempre bom ter
grama perto de você. Existe um eco desse pensamento judaico numa das
escrituras cristãs lá no apocalipse. Tem um dia então que Deus manda um
anjo descer uma praga sobre as plantas na Terra e ele fala: "mas não
fira a grama". Deus vai destruir um terço das árvores, um terço das
frutas, "mas não fira a relva". Vocês lembram disso aí? Além disso, a
grama está sempre abaixo de todas as coisas, o que é uma espécie de
perfeição de humildade. É fácil você não notar que a grama está lá, no
entanto, se ela não estivesse ela faria uma falta tremenda, você
perceberá que algo está faltando. Não é isso? Se ela estiver não é nada,
é o só o chão onde você pisa, mas se ela não estiver, algo se tornou
mais pobre. Tá claro isso aí? Pois bem, é assim que o povo de Israel se
sente diante do mundo. Quando eles estão lá, você pensa que eles são o
chão em que você pisa, mas se eles não estiverem, farão uma falta
tremenda. Existe algo sobre o ser humano que você não vai entender se
não existir o povo de Israel. Então, voltando um pouquinho, do ponto de
vista judaico a relva surge justamente quando se contraem as águas numa
só região, quando as águas são delimitadas e cercadas. Antes, o mundo
inteiro estava coberto de água, então as águas não têm um limite. Aí
elas são reunidas numa área limitada, delimitada, você tem o limite das
águas e fora delas tem a terra. Veja bem, a nossa imaginação tende a ver
as coisas do ponto de vista contrário: a terra se estende e ela tem um
limite a partir do qual é a água. Mas se você pensar que o mundo era
originariamente água você vai ver que o limite não é o limite da terra, é
o limite da água. É a água que foi contida numa área limitada e surgiu a
terra. Essa limitação das águas é para o judeu então um símbolo da
limitação da sua liberdade em nome de uma relação com Deus. Veja bem, a
esfera dos seus desejos é indefinida e ilimitada. Sua psique pode
desejar qualquer coisa em qualquer circunstância. Então ela é comparável
a essa massa de águas que cobre tudo. Aí você restringe essa massa e dá
um limite para ela. Quando você dá esse limite surge a terra e da terra
surge naturalmente a vegetação. Tá claro isso aí? Agora, se você
observar naturalmente... veja bem, o povo hebreu vivia na natureza, e
numa natureza hostil. Então ele percebia, por exemplo, que no deserto
você sente claramente toda a força do sol. Mas se você reunir as águas,
surge a vegetação naturalmente. Mesmo a força do sol não é capaz de
anular a força da vegetação. Então a vegetação passa a representar para o
judeu justamente o quê? O conjunto de bens espirituais e materiais, de
coisas que te deixam contente que surgem justamente da restrição da sua
liberdade numa determinada relação. Tá claro isso aí? É só você lembrar
do exemplo de uma relação pessoal de dois indivíduos humanos: existem
inúmeros traços que distinguem um indivíduo que você só percebe na
medida em que você restringe a sua liberdade para manter uma relação com
aquele indivíduo. Você só descobre por causa disso. [Traços] que surgem
como uma decorrência natural dessa sua restrição voluntária da sua
liberdade. Até então, até o momento dessas restrições você não conhece a
pessoa, você conhece só os seus desejos em relação à pessoa. A mesma
coisa vale com relação a Deus. Enquanto o sujeito não faz esse conjunto
de restrições ele não conhece Deus, ele conhece os desejos dele em
relação a Deus. Ele não sabe como é Deus, ele só sabe o que ele quer de
Deus. Justamente o que caracteriza o judeu, o que caracteriza ele é a fé
inabalável de que dessa restrição voluntária só surge o bem, só surgem
coisas que aliviam e facilitam a sua vida, por mais difícil que a
restrição possa parecer de início. É por isso que eles encaram os
sofrimentos deles como povo no decorrer da história como restrições
temporárias à sua liberdade para que possa se destacar e surgir um outro
aspecto de Deus e da realidade para eles. Então existem duas idéias que
dominam a mente dele [o povo judeu]. Primeiro a idéia de que tudo tem
um sentido que se explica depois, na história mesmo. Veja bem que para o
budista e para o hindu o sentido está fora da história, o sentido é
supra-histórico, não é algo que se revela depois, é algo que sempre
existiu e que está num plano fora do tempo. Para o povo hebreu não, todo
e qualquer sofrimento que você tem agora tem um sentido que se revela
depois no tempo. Por quê? Porque é uma restrição à liberdade para que
você conheça melhor a pessoa com quem você está se relacionando. É fácil
de perceber isso: se você conhece uma pessoa hoje, a primeira coisa que
ela faz que te desagrada, você não quer ver essa pessoa nunca mais.
Você nunca vai saber como era aquela pessoa. Você não tem a menor idéia
do que ela tinha para oferecer, porque você olhou só a massa de desejos
que você tinha em relação a ela e viu que essa massa de desejos não está
contente. Aí o judeu vai te dizer "olha, é o seguinte meu filho, você
não aprendeu uma lição sobre a vida". Essa massa de desejos não tem um
limite por si mesma, então não é possível contentá-la. O único jeito de
contentá-la é criando um limite para ela. Então o que acontece? Eles,
nessa relação com Deus, eles descobriram o segredo da prosperidade,
tanto espiritual quanto material. Eles descobriram: "olha, o único jeito
de perceber como as coisas realmente são é restringindo seus desejos
voluntariamente. E quando você percebe como as coisas são, você percebe
que as coisas são muito boas. Então cada episódio, cada capítulo da
história do povo hebreu mostra justamente isso: uma sequência de
sofrimentos que restrigem a liberdade deles até eles aceitarem aqueles
sofrimentos justamente como um modo de restrição da sua liberdade para
se relacionar com Deus. Aí a realidade se abre para eles, e ela se abre
justamente como um tapete de relva, uma paisagem maravilhosa.»
Luiz Gonzaga de Carvalho Neto - As Religiões do Mundo I, Aula 9