Biblioteca do Pensamento Vivo, vol. 19 -
O Pensamento Vivo de Buda
Apresentado por Ananda K. Coomaraswamy
Tradução de Ary Vasconcelos
Capítulo: "A Doutrina de Buda"
ABREVIAÇÕES
A. ........... Anguttara — Nikāya
AA. ......... Comentário do Anguttara
BG. ......... Bhagavadgītā
BU. ......... Brhadarañyaka Upanishad
Com. ....... Comentário
D. ............ Dīgha — Nikāya
DA. ......... Comentário do Dīgha
Dh. .......... Dhammapada
G. S. ........ Gradual Sayings
It. ............ Ituvuttaka
ItA. .......... Comentário do Ituvuttaka
J. ............ Jātaka
K. S. ........ Kindred Sayings
M. ............ Majjhima — Nikāya
MA. ......... Comentário do Majjhima
Mil. .......... Miliñdapañha
S. ............. Samyutta Nikāya
SA. .......... Comentário do Samyutta
Sn. ........... Suttanipāta
Ud. .......... Udāna
Uda. ........ Comentário do Udāna
Up. .......... Upanishad
Vin. ......... Vinaya — Pitaka
Vism. ....... Visuddhimagga
A Doutrina de Buda
por Ananda K. Coomaraswamy
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"Vós não o haveis de ver senão no momento em que dêle não mais
puderdes falar: pois seu conhecimento é um silêncio profundo e a supressão de
todos os sentidos." Hermes Trismegisto, liv. X. 5.
Querer dar uma idéia adequada do conteúdo da doutrina budista nos seus
primórdios é uma tarefa que apresenta dificuldades quase insuperáveis. Esta Lei
Eterna (dhamma sanantana, akālika), que não era de modo algum uma
criação intelectual de Buda por raciocínio, mas à qual êle se identificava, uma
Lei ensinada por seus predecessores num passado remoto e que seria ainda
ensinada por seus sucessores no futuro, o próprio Buda a declara profunda e
difícil de compreender por ouvintes que tenham outra mentalidade e uma outra
formação de espírito; é uma doutrina para aquêles que tenham poucas
necessidades, não para aquêles que tenham muitas. Durante a sua vida e
reiteradas vêzes, Buda teve necessidade de corrigir as falsas interpretações de
seu ensinamento; de explicar, por exemplo, em que sentido preciso era ou não
era uma doutrina de "extirpação"; ela o era no sentido que era
preciso "suprimir" o egoísmo, o mal e a dor; e não o era no sentido
do aniquilamento de uma realidade. Aliás, o que êle ensinava era o
aniquilamento de si mesmo: aquêle que quiser a liberdade deve-se ter
literalmente renunciado; para o resíduo, os têrmos da lógica do dilema "ou
isto ou aquilo", não são adequados; mas seria totalmente impróprio
dizer-se do Arhat que "expirou" libertado pela sua hipergnose, que
"êle não sabe nem vê" (D. II, 68).
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Se os erros já eram possíveis em vida de Buda, quando, como êle o disse,
acabava de reabrir um Caminho antigo há muito desprezado e obliterado por uma
falsa doutrina, quanto mais inevitáveis não serão as interpretações errôneas em
nosso século de progresso, de expressão individualista, de busca incessante de
um nível mais elevado de vida material? Quase todos nós, salvo alguns teólogos
de profissão, esquecemos que uma realidade suprema não poderia ser
convenientemente definida a não ser por uma série de negações, dizendo-se
sòmente o que ela não é. De qualquer maneira, como o fazia notar ainda Miss
Horner em 1938, "o estudo do Budismo primitivo está ainda começando a
balbuciar" (Livro da Disciplina, I, VI). Se o leitor encara o
budismo como um caminho de evasão (no que não estará cometendo um êrro) pode
ainda se perguntar a que êle se aplica, de onde parte e aonde vai êste caminho
de evasão de que se nos afirma que "existe nêste mundo" (S. I,
128).
O que agrava as dificuldades, são os êrros de interpretação que se
encontram ainda, mesmo nas obras dos eruditos. Um dos mais autorizados, por
exemplo, não compreendeu que é preciso distinguir o "porvir" cuja
cessação coincide com a obtenção da imortalidade, do "porvir
provocado" da parte imortal de nosso ser. De fato, o "porvir"
não é outra coisa que aquilo que hoje chamamos o "progresso" sem
levar em conta o fato de que a transformação pode ser para melhor ou para pior;
e não devemos esquecer que hoje, como então, "há deuses e homens que se
comprazem com o porvir, e quando se lhes fala em fazer cessar o porvir, seus
espíritos não são atraídos" (Vis. 594). Outro grande erudito afirma
que o budismo primitivo "negava um Deus, negava uma Alma, negava a
Eternidade" e se pretende, quase em tôda
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parte que, segundo Buda, não existe o Eu. Não se observa, portanto, que
o que o Buda negou foi a realidade do Ego sempre variável, da
"individualidade" psico-física; o que ele disse do Eu, do Descobridor
da Verdade ou do "Assim vindo", do Homem Perfeito, depois da morte, é
que nenhuma das expressões "vir a ser", "não vir a ser",
"vem a ser e não vem a ser", pode se aplicar a Êle ou a êste qualquer
coisa (A. IV, 384 seg., 400-401; Ud. 67, etc.). Ou então ouvimos
freqüentemente afirmar que o budismo é uma doutrina "pessimista", a
despeito do fato que o fim que êle nos propõe — a libertação de todos os
sofrimentos mentais aos quais o homem está sujeito — é um fim que se pode
atingir neste mundo e desde agora. É pelo menos não querer reconhecer que uma
doutrina só se julga pelo fato de ela ser verdadeira ou falsa, não por ela nos
agradar ou não.
A primeira preocupação de Buda, é o problema do mal no que se refere ao
sofrimento ou dor (dukkha): em outras palavras, aquilo que é corruptível
de tudo o que é nascido, composto, mutável; sua sujeição ao sofrimento, à
doença, ao envelhecimento e à morte. Que esta sujeição é um fato*, que ela
tenha uma causa, que esta causa possa ser suprimida; que exista um Caminho, um
Trilhar, uma Viagem que permita suprimí-la, eis as "Quatro Verdades
Arianas" que são o comêço da sabedoria. "Tanto no presente como até
agora eu só ensino isto, a origem e o fim do mal" (M. I, 140).
Resulta daí, que o budismo pode ser reduzido (e o é frequentemente) a simples
fórmulas de "origem causal" (pattica samuppāda): "Isto
sendo assim, aquilo vem a ser; isto
__________
* Tôda a raça humana é tão miserável e acima de tudo tão cega, que não
tem consciência de suas próprias misérias. (Comenius, Labirinto do mundo e
Paraíso do Coração, c. XXVIII). É precisamente devido a esta cegueira que
Buda hesitou em pregar o Dhama a homens cujos olhos estão cobertos de pó.
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não sendo assim, aquilo não vem a ser". Devido à operação sem
início das causas mediatas, é impossível evitar qualquer de seus efeitos
complexos; a evasão não é possível a não ser no domínio onde opera a eficiência
causal das ações passadas (kamma) e sòmente a respeito do que jamais fêz
parte integrante dêste domínio.
Se a doutrina budista pode-se reduzir ao enunciado da lei da
causalidade, é devido à incidência direta desta lei sôbre o problema da
mutabilidade e da corruptibilidade: se podemos suprimir a causa do sofrimento,
não teremos mais de nos inquietar com seus sintomas. No ciclo ou no turbilhão
do porvir (bhava-cakka, sansāra), são inevitáveis a
instabilidade, envelhecimento e a morte de tudo o que teve um início: viver ou
"vir a ser" é função da sensação; sentir é função do desejo (tanhã,
sêde); desejar é função da ignorância (avijjā = moha, ilusão). A
ignorância, origem última de todo o sofrimento e de tôda a escravidão, de todos
os estados patológicos de submissão ao prazer e à dor*, pertence à verdadeira
natureza das coisas "que ainda estão por vir" (yathā — bhūtam)
e participa em particular de sua inconstância (annicam). Tudo o que vem
a ser é mortal; quem conseguiu pôr têrmo ao porvir, não mais está submetido ao
movimento, será daí por diante, imortal. Isto nos interessa profundamente; o
mais perigoso aspecto da ignorância — o verdadeiro pecado original — é
aquêle que nos faz acreditar que "nós mesmos" somos verdadeiramente
isto ou aquilo, e que podemos sobreviver numa espécie de identidade, de um
instante ao instante seguinte, de um dia a outro, de uma vida a outra.
É por isso que o budismo não conhece a "reincarnação" no
sentido vulgar e animista do têrmo; mas
__________
* "A ignorância é a submissão ao prazer e à dor... é ceder a si
mesmo". Platão, Protágoras, 356-357.
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muitos "se enganam ainda pensando que o budismo ensina a
Transmigração das almas" (SBE. XXXVI, 142; Diálogos, II,
43). Do mesmo modo que um Platão, Santo Agostinho e Mestre Eckhart, também aqui
tôda a mudança é um processo de morte e de renascimento na continuidade, mas
sem identidade. Não existe uma entidade permanente (satto) que se possa
imaginar passando de uma encarnação a outra (Mil. 72) à maneira de um
homem que deixasse sua casa ou sua aldeia, para entrar em outra (Pv. IV,
3). Pode-se mesmo dizer que a noção de uma "entidade" como a noção do
"eu", se se deseja aplicá-la a uma coisa existente, é puramente
convencional (S. I, 135) e que
êste mundo nenhum exemplo nos oferece (Mil. 268). O que vemos perecer e
surgir de novo "não sem se ter tornado outra" é uma individualidade (nāma-rūpa)
(Mil. 98), uma consciência discernente (viññāna), herdeira das
"obras" da outra (M. I, 390; A. III, 73). Buda bem pode
ter dito que existem certamente agentes pessoais (A. III, 337 — 338);
mas não se depreende, como o supunha a Sra. Rhys Davids, que "a doutrina
da annatā seja reduzida ao nada" (GS. III, XIII). A posição
do budismo é exatamente a do bramanismo: "Eu não sou o agente do que quer
que seja; são os sentidos que se movem entre os seus objetos"; tal é a
opinião do homem reprimido, daquêle que conhece a Ipseidade" (BG. v, 89;
XVIII, 16-17). Certamente, o indivíduo é responsável por suas ações, herdará de
suas consequências, tanto que se imaginará que êle mesmo é o agente; e ninguém
é mais repreensível do que aquêle que declara: "Não sou eu quem o
fêz" enquanto êle ainda está enredado na atividade (Ud. 45; Dh.
306; Sn. 661) ou aquêle que alega que o que êle fêz tem pouca
importância nem em bem nem em mal (D. I, 53). Mas acreditar que eu sou o
agente, ou que outrem é o agente, que eu ou outrem colheremos o que semeamos,
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é passar ao lado da verdade (Ud. 70); não existe um
"eu" que age ou que herda (S. II, 252), ou para falar mais
corretamente, a questão da existência real de um agente pessoal não poderia ser
resolvida por um simples sim ou um simples não, mas sòmente em têrmos de origem
causal em conformidade com o Caminho do meio (S. II, 19-20). Mas tôdas
estas "entidades" compostas que têm uma origem causal são
precisamente coisas que se analisam inùtilmente e que sempre se verifica não
serem o "meu Eu"; neste último sentido (para matthikena), êste
ou outrem não constituem o agente. É sòmente depois de ter perfeitamente
compreendido e verificado esta proposição que nos será permitido negar que
nossas ações sejam nossas; até lá, haverá coisas que devemos fazer, e coisas
que não devemos fazer (Vin. I, 233; A. I, 62; D. I, 115).
Na doutrina da causalidade (hetuvāda), como na do efeito causal das ações (kamma)
não há nada que implique necessàriamente uma "reincarnação" das
almas. A doutrina da causalidade é comum ao budismo e ao cristianismo; tanto
uma como a outra religião declaram explìcitamente crer numa sequência ordenada
dos acontecimentos. Esta "reincarnação" da qual o budista quereria
ser desembaraçado não é o acidente de uma morte particular ou de um
renascimento particular esperado para o futuro; é todo o vertiginoso processo
de morrer e de renascer muitas vêzes que caracteriza igualmente a existência
neste mundo na condição humana e a existência no além, durante a eternidade, na
condição divina (de um deus entre muitos outros). O Arahant realizado está por
demais prevenido para perguntar: "Quem fui no passado? Quem sou no
presente? Quem serei no futuro?" (S. II, 26 — 27). Para comodidade
usual, êle se pode servir da palavra "Eu" sem deixar entender de
qualquer maneira que a noção "Eu" ou "me" comporta
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no espírito do animista (D. I,
202; S. I, 14-15). O tempo implica o movimento, o movimento a mudança de lugar;
em outros têrmos a duração traz consigo a mutação, o porvir. É por isso que a
imortalidade considerada pelo budista, não está no tempo nem no espaço, mas é
independente de tempo e de lugar. Para empregar têrmos pragmáticos da linguagem
corrente, os quais só se aplicam às coisas que têm um princípio, um
desenvolvimento e um fim (D. II, 63), poderemos dizer do Ego:
"Outrora foi, depois deixou de ser; outrora não foi, depois foi; mas em
têrmos verdadeiros: "Êle não foi; não será e não é atualmente: êle não é e
não será "meu" (Ud. 66, Th. I, 180). O turbilhão, a
roda do porvir budista não é outra coisa que δτροΧòζ τῆζ γειὲσεωζ de S. Tiago:
o Ego é para o budista uma não-realidade como para Platão e Plutarco pelo
próprio motivo de sua mutabilidade. A gaiola do esquilo gira, mas "isto
não sou eu" e na verdade existe um meio de fugir à sua revolução.
O mal para o qual Buda buscava um remédio
é o da miséria que provém da corruptibilidade de tudo o que é nascido, composto
e inconstante. O sofrimento, a mutabilidade, a não-ipseidade* (dukkha, annica,
anattā) são característicos de tôdas as coisas compostas, de tudo o que
não é a Ipseidade; e de tôdas estas coisas o Ego, o "eu", o "si
mesmo" (aham, attā) e a espécie ou a imagem exata, uma vez
que é o fim do homem que nos ocupa. É um axioma que tôda a existência**
(S. II, 101, etc.) se mantém
__________
* Em tôdas as filosofias tradicionais que
assentam como axioma que há em nós uma dualidade, é de rigor distinguir o
grande Eu, a Ipseidade, do "eu" ou Ego, o sábio, por assim dizer, do
"entendido". Na nossa exposição, a Não-Ipseidade coincide com a aegocidade
(self-isness); dizer "não-eu" (unselfishness) teria
sido exprimir exatamente o contrário. É da Ipseidade sòmente que uma
não-egocidade ontológica, e consequentemente, um não-eu ético, podem ser
atribuídos. No momento apenas discutimos o ego, o "eu"; a questão da
Ipseidade no budismo será tratada mais longe.
** Existência oposta ao "ser",
como esse à essência.
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pelo alimento material ou mental, como o
fogo se nutre de combustível; é neste sentido que o mundo está em fogo e que
nós queimamos. Os fogos da consciência do ego, da egoeidade, são os do desejo (rāga
= kamma, tanhā, lobha), do ressentimento e da cólera (dosa
= kodha), e da ilusão ou ignorância (moha = avijjā). Êstes
fogos só se apagam pelos seus contrários (A. IV, 445; Dh. 5,
223), pela prática das virtudes correspondentes, pela aquisição do saber (vijjā);
em outros têrmos, êles não cessam de "puxar", ou com precisão, êles
só se "apagam" quando lhes falta o combustível. É esta
"extinção" que se chama o "expirar" (nibbāna = sanc.
nirvâna) e que se encontra naturalmente assionado à idéia de um
"refrescar".
O Nirvâna (para empregar a forma da
palavra mais familiar aos europeus) é um têrmo fundamental da terminologia budista,
e sem dúvida o mais mal compreendido de todos*. O Nirvâna é uma morte, um fim
(no duplo sentido de estar "terminada" e "aperfeiçoada").
Tomada no passivo, tem tôdas as acepções das palavras gregas τελἐω, οποσϑὲνυμι,
e as de ψύχω (represcar). O Nirvâna não é nem um lugar nem um efeito; êle não
está no tempo, êle não se obtém por quaisquer meios; portanto é e pode ser
"visto". Os "meios" empregados na prática não são em si os
meios de se atingir o Nirvâna, mas meios de afastar tudo o que perturba nossa
"visão" do Nirvâna, da mesma forma que um candeeiro trazido numa sala
obscura nos permite ver o que aí já se encontrava. Compreendemos agora porque o "eu" (attā)
deve ser domado, vencido, refreado, rejeitado, e pôsto fora de atividade. O
Arahant, o Homem Perfeito, é aquêle cujo "eu" é domado (atta-danto),
cujo "eu"
__________
* É legítimo de o traduzir por
"extinção", como se diria de um fogo: mas "aniquilamento"
falseia as idéias. Para os hindus um fogo que se apaga não "sai",
como em inglês (going out); "entra" (going in).
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foi despojado (atta-jaho); seu
fardo foi deposto (ohita-bharo); o que tinha a fazer, foi feito (katam-karaniyam).
A êle são aplicáveis todos os epítetos dados ao próprio Buda, que não tem mais
qualquer nome pessoal*; é "liberto" (vimutto); é extinto (nibutto);
para êle não há mais porvir: obteve o repouso da fadiga (yoga-k-kheman);
é "desperto" (buddho) — epíteto que se aplica a todo Arahant e
não sòmente a Buda, por excelência —; é imutável (anejo); é
"Ariano"; não é mais um discípulo (sekko), é um Mestre (asekho).
O egoísmo (mamattam,
"possessividade"; meccheram "mau comportamento",
"lei dos tubarões") é um mal, e por conseqüência o "eu" só
se doma por uma disciplina moral. Mas o egoísmo (selfishness) é mantido pela
"egoeidade" self-isness (asmimāna, anatam attā ditthi),
e simples mandamentos serão pouco eficazes enquanto não tivermos destruído a
opinião errônea que "isto, sou eu". Pois o "eu" quer sempre
se afirmar; só depois de têrmos descobertos perfeitamente a verdadeira natureza
dêste "eu" inconstante é que deveremos nos pôr a combater nosso pior
inimigo, e dêle fazer nosso servidor e nosso aliado. O primeiro passo será
conhecer nossa situação, o segundo, desmascarar o "eu" que ficará
então desobrigado conosco; o terceiro agir em conseqüência. Mas tudo isso não é
fácil; estaremos muito pouco dispostos a nos mortificar antes de ter medido os
agregados do desejo em seu verdadeiro valor, antes de ter aprendido a
distinguir nossa Ipseidade e seus verdadeiros interêsses do nosso ego, nosso
"eu" e seus interêsses. O mal fundamental é a ignorância; é pela
verdade que o eu poderá ser efetivamente domado (S. I, 168). Sòmente
"a Verdade vos libertará!" O remédio para o amor do eu (attakāma),
é o Amor do
__________
* Gotama não é um nome pessoal, é um nome
de família, e o próprio Ananda é também um Gotâmida.
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Eu (Ipseidade) (atta-kāma) e é
precisamente neste sentido, para servirmo-nos dos têrmos de Santo Tomás de
Aquino, que por caridade, o homem deve-se amar a si mesmo mais do que qualquer
outra pessoa, mais que o seu próximo (Sum. Theol. II, 26, 4). E em têrmos
budistas: "Que ninguém comprometa seus próprios interêsses pelo bem de
outrem por maior que êle possa ser; se se conhecesse bem o verdadeiro interêsse
do Eu, seria a êste fim que se deveria visar" (Dh. 166). Em outros
têrmos, o primeiro dever do homem é de realizar sua própria salvação a partir
de si mesmo.
É necessário proceder analìticamente,
como se nos é explicado várias vêzes a propósito da "não-Ipseidade" (anattā)
de todos os fenômenos. O que é necessário repudiar, é o que hoje chamar-se-ia
de "animismo". O mecanismo psico-físico que reage não é um
"Eu"; está desprovido (suñña) de tôda propriedade de
Ipseidade. O ego, consciência ou existência "individual" (attasambhāva)
é um composto de cinco fundamentos (dhātu) associados ou de cinco
ramificações (khandha), a saber o corpo visível (rūpa kāya) a
sensação invisível (vedana, agradável, desagradável ou neutra); o
reconhecimento ou consciência (sañña); as construções, isto é, o caráter
(samkhārā)*; enfim a discriminação, o discernimento, o julgamento, a
apreciação (viññana)**: em resumo, é um composto do corpo e da
consciência discernente (saviññānaka-kāya), é a existência psico-física.
Demonstra-se por todos êstes fatores sua origem causal, sua variabilidade,
__________
* Samkhārā: a palavra se aplica
aqui às representações mentais, imaginações, noções, postulados, complexos,
opiniões, preconceitos, convicções, ideologias, etc. Num sentido mais geral, samkhārā
denota tudo o que pode ser designado por um nome ou percebido pelos sentidos,
isto é, todo nāmarupa: todos os objetos inclusive nós mesmos.
** Os cinco khandhas se assemelham
muito às cinco "faculdades da alma" de Aristóteles (Do An. II,
III) e de Santo Tomás de Aquino (Sum. Theol. I, 78, I) a saber:
vegetativa (nutritiva), sensível, apetitiva, intelectual, matriz (diagnóstica e
crítica).
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seu caráter perecível; não são
"nossos" uma vez que não podemos dizer "que sejam (ou: nós
mesmos sejamos) assim ou assim" (S. III, 66-67): não podemos
constatar o que êles "vêm a ser", o que nós "vimos a ser":
somos apenas uma entidade biológica, movida por impulsos hereditários*. A
demonstração termina sempre por estas palavras: "Aquilo não é meu, eu não
sou aquilo, aquilo não é a minha Ipseidade". Se disto vos libertais para
sempre, se renunciais totalmente às noções do "eu sou Fulano",
"eu sou o agente", "eu sou", será "vosso benefício e
vossa felicidade" (S. III, 34). Buda, qualquer Arahant, são os
"Nemo"; seria fútil perguntar seu nome.
Em outras palavras, tôda coisa, tôda
individualidade é caracterizada pelo "nome e forma" (nāma — rūpa);
o "nome" se aplica aos componentes invisíveis da individualidade; a
"forma" ou "corpo" (pois rūpa pode ser substituido
por hāya) a seus componentes visíveis e sensíveis. O que significa que
"o tempo e o espaço são as formas fundamentais de nossa compreensão de
tudo o que se modifica; a forma (ou corpo) de tôda a coisa está sujeita a
desaparecer: seu nome permanece, e por seu nome temos ainda uma ligação com
ela". É devido a seus nomes, "a Lei", "a verdade" que
o Desperto sobrevive neste mundo, se bem que êle mesmo, igual ao rio que
atinge o oceano, seja liberto do "nome e da forma": aquêle que é
"imerso nêle" não mais faz parte de nenhuma categoria, não mais é
isto ou aquilo, não está mais aqui ou lá (Sn. 1074).
Tudo isso não é particularmente budista;
é a substância de uma filosofia mundial, para a qual a salvação consiste essencialmente
em salvar o homem de si mesmo:
__________
* I. Paul, The Annihilation of Man, 1945, p. 156
Pág. 42
Deneget seipsum! Si quis... non odit
animam suam, non potest meus discipulum esse!
"A alma é vosso maior
inimigo"¹. "Se não tivesse seus empecilhos, quem ousaria dizer 'sou eu'"².
O eu é a raíz, a árvore e os ramos de todos os males de nossa queda³. "É
impossível captar duas vêzes a essência de qualquer coisa mortal... num único e
mesmo instante ela chega e se dissipa"4. Poder-se-ia
multiplicar as citações dêste gênero. O que menos se sabe, é que muitos
naturalistas e psicólogos modernos chegaram às mesmas conclusões. "O
naturalista sustenta que os estados e os fatos ditos mentais existem sòmente
onde se encontram certas organizações de coisas físicas e que êles não são
apresentados por estas coisas enquanto elas não são assim organizadas. O objeto
organizado só faz manifestar as reações de seus componentes, êle não é um elemento adicional que dirige as
reações de suas partes organizadas." Até lá, é de modo idêntico que o
naturalista e o budista interpretam as reações do "objeto
organizado", mas o primeiro se identifica ao objeto que reage5,
enquanto que o budista assegura que não há objeto que eu possa chamar "meu
Eu". Ao contrário os psicólogos, por uma extrapolação do ego, fazem ainda,
como os budista que encaram a possibilidade de alguma outra coisa que o ego,
que pode sofrer uma "beatitude infinita". "Se constatamos que
tudo é fluido... constatar-se-á que a individualidade e a falsidade
__________
¹ Al Ghazāli. Al — Risaltal Laduniyya, cap. II.
² Rumi: Mathnawt, I, 2449.
³ W, Law. Hobhouse, p. 219.
4 Timeu, 28 A. Cf. Crátilo, 440. Plutarco, Moralia 392 B.
Para a doutrina budista do "instante" (khana) em que as coisas
nascem, amadurecem e chegam ao fim, ver Vis, I 239, e os
desenvolvimentos da idéia nos textos mahâyânicos.
5 Identificação que volta à proposição animista: "Penso, logo
existo", e implica o conceito ininteligível de um único agente que pode
querer coisas contrárias um único e mesmo momento. Pareceria que, para
permanecer lógico, o positivista devesse negar a possibilidade de tôda a
direção de si mesmo; é talvez o caso.
Pág. 43
são apenas uma única e mesma coisa";
donde êste corolário como na doutrina do annatā, que "nós"
somos diversos da nossa individualidade. "Nesta individualidade de cada um
de nós, êste 'eu' que é tradicional (isto é, habitual) colocarmos em
evidência... temos a mãe de tôdas as ilusões;... o drama desta ilusão da
individualidade é que ela conduz ao isolamento, ao temor, à suspeita quase
paranóica, a ódios absolutamente inúteis". "Cada um seria infinitamente
mais feliz se aceitasse a perda de seu "eu individual" e, como o
diz Buda, não teria mais preocupações com aquilo que não tem realidade".
"Na época do racionalismo científico, que se tornara a psique? A palavra
se tornara sinônimo de consciência... não havia psique fora do ego...
Quando o destino da Europa a fizera participar de uma guerra de quatro anos de
um horror sem igual... ninguém compreendeu que o homem europeu estava possuído
por alguma coisa que o despojava de seu livre-arbítrio." Mas, além, e
acima dêste ego, há uma Ipseidade "em tôrno da qual êle gira, mais ou
menos como a terra gira em tôrno do Sol"; todavia, "desta relação
nada não é conhecível intelectualmente, porque nada podemos dizer do conteúdo
da Ipseidade*". Da Ipseidade, que nos diz o Budismo? — "Isso não é
meu Eu" (na me so attā); palavra que, com a expressão "não —
Ipseidade" (anattā) servindo para qualificar o mundo e tôdas as
"coisas" (sabbe dhammā anattā)**, está na
__________
* Os naturalistas e os psicólogos que
acabamos de citar são: Dewey, Hooke e Vagel; Charles Pierce, H. S. Sulliman, E.
E. Haddley, C. J. Jung. Vê-se que este último, que fala da "necessidade
absoluta de dar um passo além da ciência" é metafísico sem o querer. Não
damos estas citações para provar a exatidão da análise budista, mas com o único
intuito que o leitor possa compreender melhor esta última: O provérbio inglês
diz: "é comendo o 'pudding' que se sabe se êle é bom". As palavras
sublinhadas o são pelo autor da presente obra.
** Idêntico àquela do bramanismo:
"Dos que são mortais não existe o Eu" (anātmā hi martyah. SB.
II, 2, 2-3).
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base da opinião errônea que o budismo
"nega (não sòmente o eu mas também) o Eu". Mas basta considerar os
têrmos em boa lógica para se perceber que êles implicam a realidade de um Eu, o
qual não é nem uma parte nem a totalidade das "coisas" que se declara
não lhe atribuir. Como o diz Santo Tomás de Aquino, "As coisas primárias e
simples são definidas por negações: um ponto, por exemplo, se define 'o que não
tem partes'". Dante faz notar que há "coisas que o nosso intelecto
não poderia contemplar... só podemos compreender sua natureza formulando
negações a seu respeito". Era também a atitude da antiga filosofia hindu
no seio da qual o budismo nasceu: qualquer coisa que se possa dizer do Eu, não
é "assim". Reconhecer que "nada de verdadeiro poderia ser
afirmado a respeito de Deus", não é certamente negar sua essência!
Quando se insiste na questão "Existe
um Eu?" Buda recusa responder sim ou não. Dizer sim seria participar do
êrro "eternalista"; dizer não, do êrro "aniquilacionista" (A.
IV, 400-401). Da mesma forma, quando surge a questão do destino no além de um
Buda, um Arahant, do Homem em Si, êle responde que não se lhe poderia aplicar
qualquer dos têrmos "torna-se" (hoti) ou "não se
torna"; nem se torna, nem não se torna; "torna-se ao mesmo tempo que
não se torna". Pois qualquer uma destas proposições implicaria a
identificação de Buda com tudo ou parte dos cinco fatôres da personalidade;
todo porvir implica uma modalidade: ora, Buda é exterior a todo o modo. É
preciso notar que a questão está sempre redigida em têrmos de "porvir",
não de ser. A lógica da linguagem só se aplica à coisas fenomênicas (D.
II, 63): Ora, o Arahant não está contaminado por nenhuma destas
"coisas"; não há expressões verbais para aquêle cujo eu não mais
existe; aquêle
Pág. 45
que se "recolheu em si mesmo"
não mais se encontra em nenhuma categoria (Sn. 1074, 1076). Todavia
afirma-se ainda que Buda "é" (atthi), se bem que êle não seja
visível "aqui ou lá"; e nega-se que um Arahant "não seja"
além da morte. Mas se verdadeiramente não fica absolutamente nada quando o eu
não existe mais, somos forçados a nos perguntar de que uma imortalidade poderia
ser o atributo? Querer reduzir uma realidade à nulidade do "filho da
mulher estéril" só conduz ao absurdo, ou ao ininteligível; aliás Buda,
repudiando as doutrinas "aniquilacionistas" que heréticos de seu
tempo lhe atribuíam, nega expressamente ter jamais ensinado a destruição de
algo real (sato sattasa) (M. I 137, 140). "Bem que existe,
diz êle, um não-nascido, não-tornado, não-feito (akatam)*, não composto
(asamkhatam)** e, se não existisse, não haveria evasão possível para o
que é nascido, tornado, feito e composto" (isto é, do mundo) (Vd.
80) "Tu és o Conhecedor daquilo que jamais foi feito (akataññū), ó
Brahman, tendo conhecido o declínio de tôdas a coisas compostas".
Buda afirma que êle "nada
dissimula" que êle não estabelece uma distinção entre o interior e o
exterior, que "sua mão não está fechada" (D. II, 100). Mas a
Lei Eterna e o Nirvâna são "não-compostos e por êste valor transcendente (param'attha)
não existem palavras
__________
* O "mundo não feito"
(Brahmaloka) dos Upanishads.
** "Incomposto", isto é, sem
origem, desenvolvimento ou mutação (A. 1, 152); o Nirvâna (Mil, 270);
o Dhama (S. IV. 359). Por outra parte, os "estados"
contemplativos, mesmo os mais elevados, são compostos: e é dêstes próprios
estados sublimes que existe uma evasão derradeira.
Pág. 46
adequadas: all'alta fantasia qui manco
possa (Dante, Paraíso XXXIII, 742); isto será objeto da fé (saddhā)
do discípulo até que disto êle tenha experiência, até que o conhecimento venha
substituir a Fé. "Aquêle cujo espírito está abrasado com o desejo do
Indizível (anakkhātā), êsse está liberto de todos os amôres, nada contra
a corrente (Dh. 218). Os Budas só fazem proclamar "a Via" (Dh.
276). Se pode ter uma salvação pela fé (Sn. 1146), é porque "é a fé
que conduz o melhor ao conhecimento" (S. IV, 298): crede ut
inteligas. Quem diz fé diz autoridade; a autoridade de Buda (mahāpadesa)
que repousa sôbre sua experiência imediata é aquela de suas palavras tais como
êle as pronunciou, ou tais como foram narradas pelos monges-mendicantes
competentes; neste último caso, elas não sòmente foram corretamente
compreendidas, mas ainda verificadas quanto à sua conformidade com os textos
canônicos e a regra. Esta dependência da etapa inicial sôbre o que ainda não
foi "visto" não é exclusivamente budista e não exige uma particular
credulidade. A matéria do ensinamento de Buda é sempre o que êle afirma ter
visto e verificado pessoalmente: e isso, êle assegura a seus discípulos que
êles também o poderão ver e verificar se êles o seguirem na sua viagem com
Brahma. "Os Budas apenas indicam o Caminho; cabe a vós fatigar-se com a
tarefa" (Dh. 276); o Fim permanece indizível (Dh. 218); êle
não possui sinal (S. I, 188, Sn. 342); é uma gnose que não é
comunicável (A, III, 444); aqueles que só confiam no que pode ser dito
estão ainda sob êste jugo da morte (S. I, 11).
Quando se discute a questão da Fé,
esquece-se demasiadamente que nosso conhecimento das "coisas", mesmo
as que regem nossos atos mundanos, está na maior parte baseado na autoridade.
Pode-se dizer que a maioria de nossas atividades diárias cessaria se deixássemos
Pág. 47
de acreditar nas palavras daqueles que
viram o que ainda não vimos, mas que poderíamos ver fazendo o que êles fizeram,
indo onde êles foram: do mesmo modo as atividades do neófito budista
terminariam se êle não "acreditasse" nesta finalidade que êle ainda
não atingiu. De fato, êle acredita que Buda lhe disse o que é verdadeiro, e age
em consequência (D. II, 93). Sòmente o Homem Perfeito é "sem
fé" pois nêle o conhecimento do Não-feito susbtituiu a Fé (Dh. 97)
e esta não mais lhe é útil. Para o budista, o Dhamma, a Lex Aeterna, sinônimo
da Verdade* (S. I, 169) é a autoridade suprema, o "Rei dos
reis" (A. I, 109; III, 149). É com esta última autoridade, fora do
tempo e temporal ao mesmo tempo, transcendente e imanente, que Buda se
identifica, identifica a Ipseidade na qual êle se refugiou: "Aquêle que vê
o Dhamma me vê, aquêle que me vê, vê o Dhamma" (S. III, 120; it.
qi; Mil. 73). Entre as escrituras budistas, uma das mais grandiosas
é intitulada o Dhammapada: "as Marcas da Lei"; é um
itinerário, um guia para aquêles que "marcham na Via da Lei" (dhammacariyam
caranti), a qual é também a "Via de Brahma", "a viagem com
Brahma" (brahmacariyam), "a antiga estrada que seguiram os
Todo-Despertos de outrora". Os têrmos budistas para dizer a
"vereda" (magga) e a "busca" (gavesana)** da
qual Ipseidade é o objeto (Vin. I, 23; Vis. 393), indicam implìcitamente
que é necessário seguir uma pista, nas marcas***. Mas estas pistas terminam
quando a margem do Grande Mar é atingida. O monge-mendicante que era até então
um discípulo (sekho) é daí por
__________
* "Uma lei superior a nossos
espíritos, chamada Verdade", Santo Agostinho, De Vera Relig. XXX,
Cf. Santo Tomás de Aquino, Sum. Theol. II-I, 91-2.
** Cf. a história de Gavesin, p. 69.
*** Como em Platão, ou em Mestre Eckhart,
a alma seguindo a pista de sua prêsa, o Crito.
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diante um perito (asekho); não
está mais sob a direção de um preceptor (Gal. III, 25). A Via prescrita
é a do aniquilamento do eu, da virtude, da contemplação; é necessário caminhar
sòzinho com Brahma; mas uma vez atingido o fim desta longa estrada quer seja
neste mundo quer no outro, nada mais resta que o "mergulho" no
Imortal, no Nirvâna (amat'ogadham, nibbān'ogadham), neste oceano
insondável que é ao mesmo tempo a imagem do Nirvâna, do Dhama e do próprio Buda
(M. I, 488, 494; S. IV, 179, 180; v, 47; Mil, 319, 346). É
uma velha comparação, comum aos Upanishads e ao budismo: quando os rios atingem
o mar, perdem nome e forma, só se fala "mar". A vocação monástica é
já uma prefiguração dêste fim; semelhantes aos rios que atingem o mar, os
homens de tôda a casta que se tornaram monges-mendicantes não mais são
designados pelo seu antigo nome ou sua antiga linhagem: pertencem sòmente à
linhagem daquêles que procuram a Verdade e a encontraram (Dh. 239).
"A gôta de orvalho desliza para o
mar resplandecente". Sim, mas a fórmula não é exclusivamente budista: nós
a encontramos em Rūmī (Nicholson, Dīwān, XII, XV; Mathmawī,
passim), em Dante (sua voluntade... è quel mare al qual tutto si muove (Par. III, 84), em MEstre
Eckhart (also sich wandelte der Tropfe in das Meer... "o mar da insondável natureza de Deus: mergulha dentro, é o
afogamento"), em Angelus Silesius (wenn Du das Tröpflein weisz im
grossen Meere nennem, denn weisz Du meine Seel'im grossen Gott erkennem, [Christl.
Wandersmann, II 25]) e também na China, onde o Tao é o oceano ao qual tudo
regressa (Tao-te-king, XXXII). De todos os que o atingem pode-se sòmente
dizer que sua vida é oculta, enigmática. Buda, que cada um o pode ver presente
em carne e osso é desde agora "impossível de atingir" (anupalabhyamāno);
não
Pág. 49
é mais "descobrível" (ananu
vejjo); um ser assim "mergulhado em si mesmo" não poderia mais
ser relacionado a qualquer categoria (sankham na upeti [Sn.
1074]). Pois, "não há ninguém, que me vendo sob uma forma qualquer, possa
me ver"; "nome e aspecto não me pertencem". "Sòmente aquêle
que vê a Lei Eterna, vê Buda, hoje mesmo tão efetivamente que quando o Mestre
estava ainda revestido com sua personalidade (persona, máscara,
disfarce) que, no momento de sua morte, êle fêz estalar como uma cota de
malhas" (A. IV. 312).
Acabamos de deixar perceber a identidade
do Mar dantesco com o Mar budista, parecendo introduzir uma significação deísta
nas doutrinas pretensamente atéias do budismo; bastar-nos-há fazer notar que
não existe uma verdadeira distinção a estabelecer entre a imutável Vontade de
Deus e a Lex Aeterna, sua Justiça de Sabedoria, esta natureza que é a sua
Essência, contra a qual não se poderia agir sem negar a êle mesmo. A Lei,
Dhamma, fôra sempre um nomen Dei: no budismo a palavra conserva-se
sinônima de Brahma. Se Buda se identifica à Lei Eterna, isto significa que êle
não poderia pecar; não está mais "sujeito à Lei"; sendo êle mesmo a
Lei, êle só pode agir em conformidade com ela, e entre as interpretações do
epíteto "Assim vindo" ou "Descobridor da Verdade",
encontramos esta: "como fala, age". Mas para aquêles que ainda são
viajantes inexperientes, o pecado (adhamma) é muito precisamente um
delito contrário à Lei Natural, isto é, a parte da Lei Eterna que determina as
responsabilidades e as funções do indivíduo. Em outras palavras, a Lei Eterna
tem seu correlativo imanente na "lei pessoal" (sadhama [Sn.
299]) de cada um, que determina suas inclinações naturais e suas funções
próprias (attano kamma); é por cupidez ou por ambição que o indivíduo é
tentado a desprezar o horóscopo que normalmente
Pág. 50
o protege (Sn. 314, 315). Notamos
isto de passagem, porque é um êrro muito difundido crer que Buda
"atacava" o sistema de castas. O que êle fazia na realidade, era
distinguir aquêle que só é brâmane por seu nascimento daquêle que é um
verdadeiro brâmane por sua gnose, e lembrar que a vocação religiosa está aberta
aos homens de qualquer origem (A. III, 214; S. I, 167): idéia que nada
tinha de novo. A casta é uma instituição puramente social: ora, Buda se
dirigia principalmente àqueles cujas preocupações não são mais sociais: em
relação ao chefe de família êle diz que sua enteléquia é a perfeição de seu
trabalho (A. III, 363), e sòmente são condenadas as atividades que
prejudicariam a outrem. Os deveres do Soberano são muitas vêzes enumerados. O
próprio Buda era um personagem real, pois instituiu uma Lei; mas era brâmane
por personalidade (Mil. 225-227). Os brâmanes só são criticados quando
não permanecem à altura de sua antiga norma. Em muitas passagens, "brâmane"
é sinônimo de "Arahant".
Pretendeu-se que o Budismo só conhecia o
deus pessoal Brahmā, de modo algum a Divindade, Brahma, o que teria sido
estranho na Índia do século V antes da nossa era, sobretudo num antigo
discípulo dos brâmanes, e em textos que contêm tantas reminiscências dos
Brāhmanas e dos Upanishads. De fato, não se poderia duvidar que na expressão
gramaticalmente ambígua brahma-bhūto que define o estado dos totalmente
libertos, é Brahma que se deve ler e não Brahmā; aquêle que está
"plenamente desperto", é Brahma que êle "veio a ser". E com
efeito: 1º nossa atenção é freqüentemente atraída para o conhecimento
relativamente limitado de um Brahmā; 2º os Brahmā são (por conseguinte) os
discípulos de Buda, não é êle que é discípulo dêles (S. I, 141-145; Mil.
75-76); 3º em seus nascimentos anteriores, Buda já tinha sido um Brahmā e um
Mahā-Brahmā (A. IV, 88-90);
Pág. 51
seria portanto absurdo, na identidade brahma
bhūto = buddho (A. V, 226; Dh. III, 84; It. 57, etc.)
admitir que brahma = Brahmā; 4º está dito explicitamente que Buda é
"bem mais que um Mahā-Brahmā" (Dh. A. II, 60). É
verdade que os brâmanes, falando a Buda, o chamam freqüentemente Brahmā (Sn.
293, 479, 508), mas nestas passagens Brahmā não é o nome do deus, mas, como em Skr.,
a denominação de um verdadeiro e sábio brâmane* e o equivalente de Arahant (Sn.
518, 519). Quanto aos deuses (deva) por exemplo, os Indras, os Brahmās e
muitas outras deidades menores, ou anjos, não é sòmente verdade que êles
possuem ao menos tanta realidade que os homens, e que Buda, como outros
Arahants visitam seus mundos e falam com êles; aliás Buda é "o mestre dos
deuses bem como dos homens" (S. III, 86); e o que melhor, em
respostas aos seus interrogadores, declara absurda a idéia que "não existe
outro mundo" (como o sustentam os adeptos do "nada mais", que
hoje chamaríamos positivistas [M. I, 203]) e a opinião paradoxal que
"os deuses não existem" (M. I, 211). Considerando enfim que as
mesmas proposições se aplicam ao Eu e a Buda — por exemplo, esta que nem um nem
outro podem legìtimamente se definir na forma "ou isto, ou aquilo",
não sòmente a paráfrase de "Buda", é: aquêle cujo Eu é desperto** (Vis,
209; cf. BU, IV, 4, 13); mas não é apenas duvidoso que o Comentador tenha razão
ao afirmar que, nestas passagens, o Descobridor da Verdade, o "assim
vindo", é o Eu (Ud. 67 com UdA. III, 40). Buda não é
__________
* No ritual védico, o Brahmā é o mais
sábio dos quatro oficiantes brâmanes, sua autoridade em tôdas as questões
duvidosas; deduz-se que Brahma é o título mais respeitável que um brâmane possa
dar a outro quando a êle se dirige.
** Budh, atta buddho, Vis.
209; cf. BU, IV, 4, 13, pratibunddho ātmā. O "Eu desperto"
será o "Eu que foi submetido à mutação" (bhavit'attā, passim),
isto é, o "Eu não nascido (ajāta'attā) que não envelhece nem
morre" (DhA. I, 228 cf, BG, II, 20).
Pág. 52
apenas um princípio transcendente — Lei
Eterna e Verdade — é também universalmente imanente como "Homem neste
homem": pode-se deduzí-lo do epíteto "Todo no interior" (vessantara
= sansc. vicvāntara [M. I, 386; It. 32]) que se lhe aplica, como
das palavras: "Que aquêle que me deseja tratar, trate dos doentes" (Vin,
I, 302) espantosamente análogas às de Cristo: "O que tiverdes feito por um
dos menores dêstes meus irmãos, te-lo-eis feito por mim".
Em todos os escritos canônicos do
budismo, procurar-se-ia inùtilmente a afirmação de que não existe o Eu, nem
realidade distinguível do eu empírico que sofre repetidamente a decomposição
destrutiva. Muito ao contrário, o Eu é afirmado explìcitamente; em particular
na expressão que reaparece freqüentemente para dizer que isto ou aquilo
"não é o meu eu". Não devemos esquecer o axioma nil agit in
seipsum, nem o que diz Platão: "Quando em um indivíduo, num mesmo
momento, a propósito da mesma coisa, constatamos dois impulsos contrários,
dizemos que nêle deve haver dois sêres." (Rep. 604 B). É o caso,
por exemplo, quando o Eu é amigo ou o inimigo do eu-Ego (S. I, 57,
71-72; como em B. G. VI, 5-7) e sempre que existe uma relação
entre os dois "eu". Cabe ao budista
"honrar aquilo que é mais que o eu" (A. I, 125) e êste
"mais" só pode ser "o Eu Ipseidade", senhor do eu, e
"finalidade do eu" (Dh. 380). É do Eu, e não certamente de si
mesmo que fala Buda quando diz: "Tomei refúgio no Eu" (D. II,
120) ou quando êle ordena aos outros a "procurar o Eu" (Vin.
I, 23; Vis. 393), de "fazer do Eu vosso refúgio e vossa
candeia" (D. II, 101; III, 42; cf. S. III, 143). Estabelece
igualmente uma distinção entre "o Grande Eu" (mah'atta,
"Mahātmā", o magnânimo), e "o Pequeno eu" (app'ātumo,
o pusilânime);
Pág. 53
entre "o Belo Eu" e o "eu
vilão": o primeiro reprova o segundo quando um êrro foi cometido (A.
I, 57; I, 149; S. V, 88). Enfim, é absolutamente certo que dizer que
Buda "negava um Deus, negava uma Alma, negava a Eternidade" é falso.
Em muitas passagens, diz-se de Buda e
outros Arahantes ou Homens Perfeitos que êles "fizeram realizar o Eu"
(bhavit'atto): "fizeram realizar", da mesma maneira que
"uma mãe educa seu filho único"; com efeito esta forma causativa do
verbo "realizar" — é muito incômodo que ela falte em nossas línguas —
tem o sentido de "educar", "tratar", "cultivar",
"servir", "prover às necessidades de", como θεοαπευω.
Transformar o Eu é uma parte indispensável da tarefa que incumbe ao budista,
tão indispensável como sua contraparte negativa, por fim a todo
"porvir". Se uma tarefa é terminada, outra o é ao mesmo tempo, e o
fim é atingido. "É assim, diz Woodsworth, que construímos o ser que
somos". Mas o sábio moderno deve distinguir com grande cuidado o
"porvir" — que é um simples metabolismo, um processo não dirigido de
desenvolvimento automático, do "progresso", do "realizar"
que é uma cultura seletiva. O que se "realiza" é ùnicamente o eu
empírico, composto de corpo e de consciência (viñña). Fora da
constituição corporal, a consciência não pode surgir; nossas "habitações
de outrora", isto é, nossas vidas anteriores, são compostas dêste gênero,
mas elas "não são minhas", "não são meu Eu" (S. III,
86); a propósito do religioso que suprimiu nêle as condições que trariam uma
mutação renovada de sua consciência, nos é dito que é um ser cujo Eu se
libertou, existente, plenamente satisfeito, e que sabe que para êle não há mais
nascimento, mais porvir (S. III, 55).
O fim último não é sòmente atingir os
mundos de Brahma ou de se tornar um Brahmā; certamente que é
Pág. 54
um prodigioso êxito o de se tornar um
Brahmā ou, o que é bem mais, o Mahā-Brahmā de presente idade; mas não é a mesma
coisa ter-se tornado Brahma, um Buda e Arahant totalmente extinto. A distinção
entre Brahmā e Brahma, transposta no vocabulário cristão, seria aquela que
existe entre Deus e a Divindade; os textos budistas serão esclarecidos pela
citação de proposições análogas tiradas de dois místicos cristãos entre os
maiores e os mais intelectuais. Ei-los:
Mestre Eckhart diz: "Convém aprender
o que são Deus e a Divindade. Deus trabalha, a Divindade não faz trabalho
algum. Deus torna-se e não se torna (wirt und entwirt); êle é a imagem
de todo o porvir (werdende) mas a natureza do Pai não "vem a ser"
(unwerdentlich ist) e o Filho é um com Êle neste não porvir (entwerdende). O
porvir temporal termina no eterno não-porvir" (Pfeiffer, 516 e 497). Pois
"é mais essencial que a alma perca Deus, do que ela perca as
criaturas" (Evans, I, 274) se ela deve atingir êsse estado em que seremos
"tão livres como quando não éramos, livres como a Divindade em sua
não-existência". "Por que não se fala da Divindade? Porque tudo o que
ela é em si é apenas uma só e mesma coisa, e que nada há a dizer... Quando
retornar ao solo, às profundezas, à fonte da Divindade, ninguém me perguntará
de onde vim ou o que fui" (Pfeiffer 180-181). "Nossa essência não é
aniquilada, embora não devêssemos ter nem conhecimento, nem amor, nem
beatitude: isso se torna como um deserto onde sòmente reina Deus*". É por
isso que o autor desconhecido do Livro de Conselho Privado e
__________
* A "não-existência", a
"fonte", o "deserto" de Mestre Eckhart são análogos ao Mar
dos budistas de que falamos, onde desaparece a diferenciação (cf. a definição
da theosis em Nicolas de Cuse: ablatio omnis alteritatis et
diversitatis) e ao Mar do Amor, a Não-existência de Rūmi, onde o Amante se
torna o Amado (Mathnawī, I, 504 1109; H. 688-690; III, 4723: VI, 2771 e passim,
com os comentários de Nicholson).
Pág. 55
da Nuvem da Ignorância faz uma
distinção entre aquêles que são chamados à salvação e aquêles que são chamados
à perfeição: citando a escolha de Maria "que tomou a melhor parte, aquela
que não lhe será arrebatada" (Livro do Conselho Privado, f. 105 a)
êle diz a propósito da vida contemplativa que "se ela começa neste mundo,
ela durará eternamente" e acrescenta que nessa outra vida "não mais
será necessário praticar obras de caridade nem chorar pela nossa miséria"
(Livro do Conselho Privado, cap. XXI).
Os paralelos dêste gênero ajudarão às
vêzes melhor a compreender o conteúdo do budismo que as citações diretas do
canon búdico: colocam o leitor na medida de passar de um vocabulário que êle
conhece a uma linguagem que conhece menos. É quase inútil dizer que para o
leitor ou o erudito europeu que se propõe estudar sèriamente uma religião
oriental, um conhecimento amplo da doutrina e do pensamento cristão e seu
ambiente grego, é quase indispensável.
Os dois "eu" se encontram numa
dramática oposição quando um dirige censuras ao outro. "O Eu repreende o
eu (attā pi attanam upavadati) quando se faz o que não se devia fazer (A.
I, 57-58); por exemplo, quando o Bodhisatta mendiga seu alimento pela primeira
vez. Os restos pouco apetitosos que lhe dão enojam-lhe o coração, mas "êle
se censura e não se deixa abater" (J. I, 66). O Eu sabe o que é
verdade e o que é falsidade; o eu Feio não pode dissimular sua má ação ao Belo
Eu (A. I, 149). O Eu é pois nossa consciência, nosso saber interior,
nossa syntêrêsis, o Daimon socrático "que só ama a
Verdade" é que "sempre me reprime do que meu eu queria
fazer". Todos os homens sabem por
experiência que há "uma coisa na alma", como diz Platão, que os
convida a beber e uma coisa que lhes proíbe; uma tem fome e sêde, a outra
"faz as contas" e cabe a nós
Pág. 56
decidir qual das duas será soberana, a
melhor ou a pior. O "Eu" é o Agathos Daimon; cabe a
"mim" obedecer-lhe.
Isto nos leva a considerar a doutrina da
"pureza do Daimon" (yakkassa suddhi). Não nos importemos com o
fato que os gênios possam ser múltiplos, da mesma maneira que outras tradições
conhecem uma multiplicidade de outros espíritos além do Espírito; admitiremos
que o Daimon por excelência (sansc. yaksha) fôra, a princípio, e era
ainda nos Upanishads, Brahma: êste Brahma que é ao mesmo tempo transcendente,
e, como o "Eu do eu", imanente. Os próprios Sākyas tinham sido os
adoradores do Yakkha Sākyavardhana, que mui provàvelmente não passa da natureza
"sempre fecunda". No budismo, Buda tão freqüentemente qualificado de
"Tornado Brahma" (brahma-bhūta), é também chamado um Yakkha,
um Daimon, do qual falamos de passagem sôbre a "pureza". Buda é
"não-contaminado" (anūpalitto), totalmente
"expirado", chegado ao têrmo (attha-gata, como o predizia o
nome que lhe deram, Siddhartha), puro (suddho), imutável (anejo),
sem desejo (Sn. 478; cf. M. I, 386, buddhassa... āhuneyyassa
yakhassa); "Tal é a pureza do Daimon, êle que é o Descobrir da Verdade
tem direito à oferenda"; êle é o Daimon āhuneyya " a quem se
deve apresentar a oferenda do sacrifício (S. I, 32; M. I, 386; Sn.
478). Enquanto que tôdas as existências se mantêm pelo "alimento"
(físico ou mental) (D. III, 211) e com êle se deliciam, pergunta-se
"qual é então o nome dêste Daimon que não encontra prazer no
alimento?" (S. I, 32; cf. Sn. 508). Isto lembra exatamente a
pergunta: "Não me dirás quem é?" e a resposta de Sócrates: "Se
te dissesse seu nome, tu não o conhecerias"; aliás na tradição hindu e em
muitas outras "Quem?", é o nome mais apropriado do Deus que é o
"Eu de tôdas as existências",
Pág. 57
que não veio de parte alguma, que jamais
se tornou alguém. Êste "Eu de todos os sêres" é o Sol; "não o
sol que todos podem ver, mas o Sol que poucos conhecem pelo Espírito" (arepassa,
isto é, anupalitto). É essa uma das numerosas razões para assimilar Buda
(brahmabhūta, também chamado "o Ôlho que está no mundo" e
"cujo nome é verdade") a esta "Luz das luzes", êste
"Sol dos homens".
O que nos ocupa no momento é a expressão
"não contaminado". Explìcitamente ou implìcitamente, tanto nos textos
búdicos ou pré-búdicos (onde deparamos ainda com o "Sol" "lôto
único do céu") a alusão metafórica se refere à pureza do lôto que
"não é molhado pela água" acima da qual flutua. Buda, igualmente
"não é maculado pelos contactos humanos" (Sn. 456; cf. S.
IV, 180); não maculado pelo mundo (A. III, 347) nem por tôdas as coisas
do mundo (A. IV, 71). O que fica assim explícito, projeta uma luz sôbre
a natureza do fim que Buda e outros Homens Perfeitos procuraram e atingiram.
Imagina-se demasiadamente que a noção de um fim "além do bem e do
mal" é de origem moderna. Ao contrário, ela se apresenta não sòmente nos
textos hindus, mas também islâmicos e cristãos, faz parte da diferenciação
normal entre a vida ativa e a contemplativa: a virtude é essencial para
a primeira, dispositiva sòmente para a segunda, cuja perfeição é
precisamente o fim último do homem, isto é, a contemplação beatífica da
Verdade. É uma idéia que é repetida muitas vêzes nos textos budistas: aquilo de
que o Homem Perfeito não é contaminado, não é sòmente o mal ou o vício, é
também o bem e a virtude. Muitos textos o dizem em têrmos próprios: "não
contaminado, seja pela virtude, seja pelo vício, o eu rejeitado, pois nenhuma
ação é doravante necessária aqui" (Sn. 790); "aquêle que fugiu
dos laços seja da virtude, seja do vício, que é sem mágoas, ao qual
Pág. 58
nenhuma poeira adere, aquêle que é puro,
é a êle que chamo um verdadeiro brâmane" (Dh. 412), isto é, um
Arahant. Ainda mais notável é a parábola da balsa: "Abandonai o bem e com
mais razão ainda, o mal; aquêle que atingiu a outra margem não precisa de
balsas" (M. I, 135). Temos uma analogia perfeita na frase de Santo
Agostinho: "Que êle não mais se sirva da Lei como meio de conseguir quando
conseguiu" (De spir. et lit. 16) e aquela de Mestre Eckhart:
"Atingida a outra não preciso mais de nau"; o mesmo autor diz também
"Olhai a alma divorciada do que quer que seja... não deixando mais traço
nem de vício nem de virtude".
A "pureza" não se atinge pela
fé, nem a audição, nem o conhecimento, nem a ética, nem a ação: mas ela não se
atinge também sem elas (Sn. 839); em outros têrmos, a formação moral é
absolutamente indispensável, mas em si ela não traz a perfeição. Há regras de conduta estabelecidas para os
chefes de famílias e outras para os religiosos: estas últimas, bem entendido,
são mais severas, mas elas nada têm de excessivo: as torturas do corpo são
severamente condenadas. Os religiosos que tinham cometido uma falta (é
necessário compreender bem que alguns quiseram entrar na Ordem por razões
indígnas) podiam ser citados e censurados pùblicamente diante da assembléia dos
monges, e expulsos no caso de faltas graves. Ao contrário, os monges
mendicantes não estavam então, mais do que hoje, aliás, ligados por laços
inquebrantáveis; eram livres de regressar à vida familiar quando o quisessem;
no máximo êles se expunham a que se lhes censurassem sua fraqueza.
A prática das virtudes morais pelo chefe
de família ou o discípulo-mendicante, o conduz a renascer num céu mais ou menos
elevado. O primeiro obtém méritos pela sua boa conduta e sobretudo pela sua
generosidade; e a êste propósito deve-se notar que Buda exorta um chefe
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de família recentemente convertido, e
tornado zelador leigo, a não abandonar seu antigo hábito de sustentar
materialmente uma ordem rival de religiosos que são portanto heréticos aos
olhos de um budista. O religioso-mendicante, que só possuía suas vestes, sua
tigela de esmolas, seu cântaro e seu bastão, não podia, êle ser generoso de seus
bens; mas podia ensinar aos outros, e não se lhe poderia oferecer mais digno
presente que de lhes dar a Lei Eterna. Os laços de família não existiam mais
para êle como obrigações que implicam deveres; era-lhe proibido ocupar-se de
política, participar dos prazeres, das provas, das ocupações das pessoas que
vivem no mundo. Seu dever era devolver o amor pelo ódio àquele que o insultasse
em palavras ou por vias de fato, e praticar as "estadas de Brahma" (brahma
vihāra), os "estados divinos" do Amor, da Piedade, da Ternura e
da Imparcialidade (mettā, karmā, upekkhā). O primeiro dêstes estados
consiste em fazer resplandecer voluntàriamente um amor benevolente para todos
os sêres vivos sem excessão. "Com um coração de Amor, êle permanece
irradiante uma quarta parte, depois um segundo, um terceiro, um quarto; e assim
o vasto mundo inteiro acima, abaixo, de todos os lados e por tôda a parte,
continua a irradiar do coração de Amor abundante, sem limites, sem
máculas" e pensando: "Que todos sejam felizes!" (Sn. 143 sg).
Aqui a palavra "todos" não designa sòmente os sêres humanos, mas
todos os sêres do universo sem excessão. A Imparcialidade, ao contrário, é um
estado subjetivo de paciência e de despreendimento, é considerar as coisas
agradáveis ou desagradáveis que vos acontecem, no mesmo espírito que vós
olharíeis representar uma peça: vós assistis às aventuras do herói sem nela
participar. A "libertação do coração" que daí resulta é favorável a
um renascimento último nos mundos de Brahma e à familiaridade, senão identidade
de Brahmā, considerando
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que a disposição do religioso que nêle
desenvolve êstes estados de espírito sem egoísmo é a mesma que a de Brahmā.
Poder-se-á observar que até aqui é um método exclusivamente ético, que
pressupõe a virtude da inocência (da não-nocividade) (ahimsb, M.
I, 44; S. I, 163; Sn. 309, 368, 515, etc.). É uma palavra que se
tornou muito familiar a nossos contemporâneos, sendo o princípio da "não
violência" preconizada por Gandhi como regra de conduta em tôda a
circunstância: "Depõe teu gládio". A educação da vontade precede
lògicamente à do intelecto.
Mas êstes métodos éticos que comportam
ainda a noção do eu por oposição a outrem são apenas uma parte do
"caminhar com Deus" (brahma-cariyam) ou "caminhar com a
Lei" (dhamma-cariyam); não é êste o último ponto do caminho; muito
resta ainda a fazer. É-nos dito que, como os religiosos que não são ainda
"completamente libertos" e que se gabam de terem chegado ao fim de
sua tarefa (A. V, 336; cf. M. I, 477) os deuses são
freqüentemente inclinadoa a crer, bem falsamente, que sua situação é imutável,
eterna, e que nada mais têm a realizar (A. IV, 336, 355, 378; S.
I, 142). E, com efeito, vemos Buda censurar Sāriputta de ter indicado, a um
brâmane que o interrogava, o modo de ter acesso aos mundos inferiores de Brahma
sòmente, quando resta ainda tanto caminho a percorrer (M. II, 195-196).
É constantemente admitido que aquêles que ainda não obtiveram seu
"expirar" total (sansc. parimi vāna) neste mundo, se todavia
êles estão bastante adiantados para "não mais regressar", têm a
faculdade de atingir sua perfeição e assegurar-lhes sua evasão final seja qual
fôr sua situação no outro mundo: é esta a razão pela qual Buda é o mestre não
sòmente dos homens, mas também dos deuses.
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Qual é pois a tarefa que resta a cumprir
aos religiosos e àqueles que atingiram uma vida (susceptível de durar idades)
nos céus do Empíreo, sem pertencer ainda ao número de Arahants cuja
"tarefa foi cumprida"? Não se trata de obter um estado superior pelas
boas obras; o fruto das obras já foi adquirido: trata-se daí por diante
ùnicamente da vida de contemplação (jhāna). O jhāna (sansc. dhyana,
chin, tch'an, jap. zen) corresponde quase exatamente ao segundo
têrmo da série "Consideração, Contemplação e Êxtase" na ascese
ocidental; a samādhi, literalmente "com-posição" ou
"sintese", como a dos raios no centro do círculo*, corresponde ao
Êxtase e pressupõe a consumação do jhāna em tôdas as etapas. O jhāna,
é a realização ativa e desejada de estados de ser diversos daquêle no qual
contemplativo se encontra normalmente; a fôrça do têrmo é totalmente
desconhecida pelos sábios que a denominam uma "mediação" ou, o que é
ainda mais falso, um "devaneio". A contemplação é uma disciplina mental
das mais árduas, que exige uma longa prática: não é uma variedade de sonho no
estado de vigília; "nada aí lembra o transe, mas muito mais uma vitalidade
exaltada" (P. T. S. Pāli Dictionary, s. v. jhāna). O adepto
pode passar na hierarquia dos estados de um a outro, à sua vontade, e a nela
tornar a descer (D. II, 71, 156); êste domínio absoluto dos estados
contemplativos distingue claramente o yoga hindu de tôda a experiência
mística que é apenas passiva e adventícia. Os estados contemplativos constituem
uma espécie de escala que se pode ascender de estados de ser ou
"níveis" inferiores, aos
__________
* No simbolismo arquitetural, ao qual se
refere freqüentemente, a concentração dos poderes psíquicos em sua origem,
empresta, freqüentemente, a imagem dos arqueiros que se reunem no acabamento do
zimbório, e êste acabamento (arrendado) é a "porta do sol" pela qual
se escapa de um mundo condicionado qualquer, que representa o espaço interior
(a "gruta" de Platão) do edifício.
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superiores; mas a finalidade última da
libertação se encontra ainda além.
Os jhānas são em número de quatro,
acessíveis tanto aos leigos quanto aos monges; com os quatro arūpa-jhānas
(estados "sem forma", completamente imateriais), é uma série de oito
etapas da libertação (vimokkha, D. II, 69-71, 112, 156, e passim).
No primeiro jhāna, é preciso dar ao espírito "uma única
direção" e voltar a atenção sôbre qualquer suporte da contemplação que
seja de uma natureza apropriada ao temperamento e à constituição do discípulo;
é geralmente seu mestre que o escolhe. No segundo, o praticante vê ainda a
forma exterior e êle, mas não mais têm consciência da sua própria; é uma
experiência extática. No terceiro, o êxtase se desvanece, e só resta uma
consciência da infinidade do poder de discriminação (viññāna). No sexto
domina a sensação que "nada existe" (n'atthi kimci). No
sétimo, não há mais discriminação, e é um estado onde não há nem consciência
nem inconsciência (saññā). No
oitavo, há a interrupção de tôda a consciência ou sensação (D. II, 69-71,
112, 156). Quanto um religioso se tornou mestre dêstes oito graus da libertação
em sua ordem ascendente, em sua ordem descendente, e numa e outra
consecutivamente, de tal sorte que se pode submergir em qualquer um dêstes
estados ou dêles sair à vontade e durante o tempo que desejar; quando pela
extirpação dos fluxos êle penetra nesta
liberdade da vontade (ceto vimutti) e nesta liberdade intelectual (paññā
— vimutti) da qual êle tem agora um conhecimento direto e uma prática
efetiva desde agora, então se diz dêste religioso que êle é "livre nos
dois sentidos", e não existe liberdade, nos dois sentidos, diversa nem
mais alta que aquela (D. II, 71; cf. Sn. 734-753).
Mas é necessário compreender bem
claramente que a obtenção dêste completo domínio, permitindo percorrer
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a hierarquia dos estados de existência ou
céus superpostos, não é um fim em si, mas um meio de obter a libertação de
todos os "estados"; pois todos são contingentes, todos têm uma origem
e um fim; por pouco que se conheça sua natureza verdadeira, seus prazeres e
suas dores, e o meio de dêles se evadir (nissaranam), ninguém com êles
se deliciará nem nêle desejará permanecer para sempre, fôsse mesmo no estado
mais alto (D. II, 79). Seja qual for nossa situação na hierarquia dos mundos,
sempre restar-nos-á uma outra margem a atingir; é sòmente para o ser
completamente liberto que nada mais resta a cumprir. Do ponto de vista do summum
bonum; alcançar um dos céus não vale muito mais que estar ainda neste
mundo; a grande obra não está ainda realizada. É para explicar isso que Buda
expõe a doutrina do Caminho do meio: majjhena tathagato dhammam deseti.
Esta doutrina importantíssima, que é
platônica, aristotélica e escolástica, tanto como bramânica e budista, tem
tantas aplicações quantas alternativas possui; se se escolhe entre êste mundo e
qualquer outro (que se opõe como as "orlas" de um mar) êste é apenas
um caso particular.
O verdadeiro "habitante do fim do
mundo (lok'anta-gū) não está ligado à existência neste mundo nem a
nenhum outro, por mais alto que seja; pois todos os sêres (sattā), os
deuses como os homens, estão presos nas correntes da morte" (S. I,
97, 105). Há sempre dois extremos (antā); é perante o extremista (anta-g-gahika)
que dá um valor absoluto a um ou outro, que Buda propõe o que é mediano; o
verdadeiro "Caminhar com Deus" (brahmacariya) é um caminho do
meio. Desde o tempo em que era Bodhisatta, após ter sido criado na abundância,
depois de ter mortificado a carne quase até morrer, o Mestre compreendera que
nem um nem outro dêstes extremos o conduziria ao conhecimento
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que procurava e que obteve seguindo o
Caminho do Meio. Da mesma maneira, a Pureza não se obtém pela virtude, como
também sem ela (Sn. 839); trata-se de ser puro não sòmente do vício mas
também da virtude. O mesmo se dá com tôdas as "teorias" (ditthi),
tôdas as afirmações e negações: é (é o êrro eternalista) e não é
(é o êrro aniquilacionista) não são nem uma nem outra das definições exatas da
realidade última (S. II, 19-20, 117): como para Bvethins, "a fé é
uma média entre heresias contrárias". Isto não quer dizer que o Caminho do
Meio tenha uma dimensão; se se quisesse localizá-lo no espaço, o fim não
estaria aqui, nem além, nem entre os dois (Ud. 8) e não é "contando
seus passos" mas em si mesmo que se chega ao fim do mundo (S. I,
61-62; A. II, 48-49; S. IV, 94). O tempo é encarado da mesma
maneira, e é talvez êste o lado mais interessante do princípio atomista. A
existência (isto é, a origem e a dissolução) de tôdas as coisas, é momentânea (khamika,
Vis. I, 230, 239; Dpvs. I 16) como ela o era para Heráclito (cf.
Plutarco, Moralia, 392 a. C.). Êste in stant e (khana) no
qual tôdas as coisas surgem, existem e cessam de ser simultâneamente, é êste
presente sem duração que separa o passado do futuro e dá a ambos uma
significação. O tempo, no seio do qual sobrevém a mutação, não é nada mais que
a sucessão ou fluxo de instantes análogos, cada um dos quais sendo em si fora
do tempo* é nosso Caminho do Meio (A. IV, 137). A vida, tal como a
conhecemos empìricamente, é o campo das ações transitórias, e são
__________
* É verdade que os "homens têm o
sentimento de que o que não pode ser formulado em função do tempo não pode ter
significação", mas "a noção de um ser imutável e estático deve-se
entender mais como indicando um processo de uma vivacidade tão intensa que êle
compreende ao mesmo tempo o princípio e o fim" (W. H. Sheldon, The
Modern Schoolman, XXI 133). "Mais a vida do eu se identifica com a
vida do não-eu (isto é, o Eu), mais se vive intensamente (Abd — el — Hādi no Véu
de Isis, jan. 1934).
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elas, precisamente, das quais herdamos as
conseqüencias. Por outro lado, as atividades imanentes, permanecendo confinadas
no agente, não envolvem êste nos acontecimentos exteriores, e, pela mesma
razão, permanecem inacessíveis à observação. Várias expressões budistas (por
ex. thit'ato [S. III, 55; Sn. 519, cf. 920]) que se
opõem ao caráter transitório aniccam de tudo o que é não-Ipseidade,
implicam a imobilidade do Eu liberto. Daí resulta que a vida transcendente,
supralógica, do Eu liberto, está contida no Eu. Os instantes tomados em si
mesmos são apenas um só; sua sucessão aparente é convencional.
O "instante" sem duração,
conseqüentemente, é nossa mais bela ocasião: — "é hoje o dia da
salvação" — e vemos Buda dirigir elogios aos religiosos que
"aproveitaram seu instante", e censurar os que o deixaram escapar (S.
IV, 126; Sn. 333). Os instantes, de fato, não escapam; mas quem consegue
segurar um, escapa de uma só vêz à sua sucessão; para o Arahant que
"expirou", o Tempo não mais existe. Seja qual fôr o caso, é pelo
princípio de causalidade que Buda ensina o Caminho do Meio: sejam quais forem,
os dois extremos, é o desejo, literalmente a "sêde" (tanhā)
que "semeia" o ser para um porvir renovado; é sòmente pensando no
Meio que se evita ser contaminado por um extremo ou por outro (A. III,
399-401; Sn. 1042). Platão, igualmente, diz que é segurando bem o fio de
ouro da Lei comum que o boneco humano evitará os puxões contrários e
desordenados que nos puxam para cá e para lá, na direção das boas ou más ações,
determinadas pelos nossos desejos (Das Leis, 644).
Não é sem razão que o religioso é tratado
de operário (samana, literalmente, "aquêle que se esforça", o
exato equivalente semântico de "asceta"), êle não conhecerá repouso
antes de se tornar aquêle que "fez
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o que tinha a fazer" (katakaraniyo).
É necessário que seja um homem senhor de sua vontade e de seu pensamento, não
seu joguete. Aquêle que Buda louva como "iluminador" da floresta onde
vive na solidão, é o religioso que, regressando de sua viagem, de sua
mendicidade, retorna ao seu assento de meditação, resolvido a não se levantar
antes de se ter libertado dos fluxos. Para obter o que não foi ainda atingido,
para verificar o que não foi ainda verificado, o religioso que abandonou o
mundo por pura fé, que é ainda um discípulo, deve dar prova de virilidade, de
heroísmo (viriyam) e tomar a mesma resolução do próprio Bodhisatta.
"Possa eu só conservar a pele, os tendões e os ossos, enquanto minha carne
e meu sangue secarem, em vez de me conceder um descanso na prática da
virilidade antes de ter obtido o que se pode obter pela paciência humana, a virilidade e o
progresso perseverante" (S. II, 28; M. I, 481; A. I,
50; J. I, 70). "Eu me tornarei diferente da substância que
constitui um mundo, eu extirparei a noção do "eu" e do
"meu", eu terei o domínio perfeito da gnose que não se comunica, eu
verei claramente a causa e origem causal de tôdas as coisas": tais são as
intenções do religioso.
Como vimos, o desígnio original e
fundamental (attha) do Bodhisatta era obter a vitória sôbre a morte, e
com efeito êle venceu a morte durante a noite do Grande Despertar; em seguida,
ensinando a Lei Eterna, "êle abriu as portas da imortalidade" a
outros. Podemos pôr à prova a eficácia do "Caminhar com Brahma" (que
o religioso realiza de conformidade com seu ensinamento) perguntando-nos como o
Arahant considera a morte de outro ou aguarda a sua própria. No que concerne à
morte de outro, faz parte de sua disciplina estar "atento à morte",
refletir no fato de que todos os sêres sem excessão, mesmo os deuses do mundo
de Brahma, são, no
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fim de contas, mortais; não perdendo
nunca de vista esta idéia, o religioso permanece impassível mesmo diante da
morte de Buda, pois sabe que a corrupção e a dissolução são inerentes a todos
os compostos: sòmente os noviços e os deuses inferiores choram e se lamentam
quando "o Ôlho do Mundo" desaparece. A Índia repetia há muito tempo
que a imortalidade do corpo é coisa impossível; portanto o Arahant sabe muito
bem que sua hora virá. O homem mediano, ignorante, "se lamenta, esmorece,
chora e geme" quando o fim se aproxima; não o discípulo ariano que
extinguiu os fogos do eu; sabe que a morte é o fim inelutável de tôdos os sêres
que nasceram; é para êle um axioma, e espera a morte perguntando-se sòmente
"como fazer o melhor uso de minha fôrça no acontecimento que se
aproxima?" (A. III, 56). Estando já morto para tudo o que é
suscetível de morrer, espera com perfeita calma a dissolução do veículo
temporal; pode dizer: "Não desejo a vida e não estou impaciente para
morrer. Espero minha hora como um servidor espera seus salários; despojar-me-ei
de meu corpo enfim, presciente, refletido" (Th. I, 606, 1002).
Mesmo se o discípulo ariano — seja êle religioso ou ainda chefe de família —
não terminou de fazer tudo o que tinha a fazer, tem ao menos a segurança que,
voltando à existência alhures, segundo seus méritos, ser-lhe-á possível, também
lá, trabalhar ainda no seu aperfeiçoamento. As palavras "Ó tumba, onde
está tua vitória, ó morte, onde está teu aguilhão?", poderiam ter saído
dos lábios de Buda ou de qualquer verdadeiro budista. Para êle, não mais
porvir, não mais sofrimento; se fica ainda a sofrer, não poderia ser por muito
tempo, pois já está adiantado na longa estrada que leva ao Nirvâna, e "em
verdade, êle em breve atingirá o seu término".