A MÍMESIS
Tenho uma caixa com um punhado de dez esferas de côres
diferentes. Com elas posso formar um número imenso de combinações. Mas tôdas as
vêzes que formo a combinação das côres verde-azul-encarnado,
repito essa combinação, êsse arithmós.
E se reunir três esferas das mesmas côres, mas outras, repetirei a mesma
combinação.
Êsses números (arithmoi)
não são mero nada. São possíveis que
se actualizam existencialmente, cada vez que as coisas repetem a sua forma.
Pois bem, êste exemplo grosseiro permite-nos compreender as
formas platônicas. Elas são únicas e sempre as mesmas, mas as coisas as copiam,
as multiplicam, por imitação, por mímesis.
Mas êsses possíveis
o são apenas para nós, para o plano cronotópico, pois são a verdadeira
realidade, como a forma do triângulo é a verdadeira realidade dos triângulos,
pois êste ou aquêle, que por acaso eu traço, serão passageiros, transeuntes,
nunca, porém, a forma do triângulo (triangularidade) imperecível, eterna,
perfeita, que êstes aqui, hic et nunc,
apenas copiam, sem nunca alcançar a sua perfeição.
Os eide são
ontologicamente extra-mentis. São
realidades independentes de nossa mente, de nossas idéias no sentido
psicológico; são ousíai kôristai. São
subsistentes num modo de ser que não é cronotópico, pois se estivessem
submetidas ao complexo tempo-espacial seriam destructíveis. Têm um modo de ser
essencial e, por serem eternas, ultrapassam a todo modo de ser da
temporalidade, que apenas tem um laço de participação com aquêles eide (metéxis)...
São as formas que sustentam e dão subsistência às coisas (parousia), pois elas dão unidade às
aparências; arithmoi, que dão
coerência aos entes cronotópicos; são, por isso, superiores, são paradeigmata (paradigmas).
Se são elas subsistentes de per si, ou no Ser Supremo, ou
se, por sua vez, são da essência do ser, são temas dos quais não podemos tratar
já, pois exigem outras análises.
[...]
Mas o que nos interessa para a gnoseologia é compreender
como, para Platão, nosso espírito (nous)
capta os esquemas dêsses arithmoi,
dêsses eide.
Mas onde os capta? Como poderíamos conhecer um objecto se
não o possuímos já de alguma maneira? Como se poderia dar a assimilatio do conhecimento sem o
semelhante? Como posso conhecer sem que haja em mim algo que se assemelhe ao
objecto?
É necessário alguma presença em mim do objecto. Que êle se imprima em mim através dos sentidos,
compreende-se, mas como poderia imprimir-se em mim, sem que, de minha parte, se
dê, emergentemente, uma aptidão para receber esta impressão?
Essa nossa capacidade de receber os objetos pelos sentidos
não é tudo no conhecimento, pois sei
que conheço e realizo, ao conhecer, uma actividade. Há algo latente em mim que
é despertado.
AS FORMAS
Ao tratarmos de tal tema, assim escrevemos em “Filosofia da
Crise”:
“A própria efectivação da forma, neste ou naquele ser,
demonstra que ela era alguma coisa, e não o puro nada, antes do seu surgimento,
nesta ou naquela coisa, pois, do contrário, não teria surgido no pleno
exercício desta ou daquela actualidade. Por um vício natural do espírito
humano, cujo esquema tem uma base muito mais profunda na nossa experiência
vital, tendemos naturalmente a substancializar as coisas, para dar-lhes uma
firmeza que as sustente. É natural que, num pensamento filosòficamente
incipiente, procurassem alguns dar às formas uma substancialidade qualquer,
mesmo de grau intensistamente, considerando-as, assim, como algo com uma
estructura ôntica limitada. Daí a necessidade de colocá-las em um lugar, o que
já revela debilidade filosófica.
Jamais o pensamento platônico se pode confundir com êsse
pensamento vulgar. Considerar, como tal, a concepção de Platão, é um modo de
caricaturizar a sua filosofia.
As formas não são para êle tòpicamente ubiquadas em qualquer
lugar. Nem tampouco têm elas qualquer estructura sensível, isto é, captável
pela intuição sensível. Eis por que não pertencem elas ao mundo da aparência,
ao mundo do fenômeno, que é precisamente o que é captado pela intuição
sensível, pelos sentidos. Se as formas têm uma consistência, não têm elas uma
subsistência, com perseidade (de per se),
isto é, actualizadas fora de suas causas, como é próprio de todo existente.
Aquêles que pitagorizam Platão, como é comum dizer-se, na
verdade intrepretam genuinamente o pensamento do grande filósofo grego, pois as
formas, não tendo uma existência de per si, pertencem, no entanto, ao mundo
verdade, que é o mundo divino, do Ser Supremo, no qual elas subsistem. Todos os
sêres, que formam uma unidade de qualquer espécie, quer de mera agregação, quer
por accidente, quer substancialmente, têm uma forma, pela qual são o que são, e
não outra coisa.
Esta forma, que é intrínseca aos sêres, é a sua lei de
proporcionalidade intrínseca que lhes dá a especificidade. Quando Tomás de
Aquino diz que a forma, enquanto ela mesma não é pròpriamente um ente, mas sim
através dela é que alguma coisa é o que é, quer dizer que a forma é produzida,
não como uma forma de per si subsistente, mas por ter tal forma é que a coisa é
pròpriamente produzida. Neste caso, o sujeito da forma achava-se num estado
potencial para receber, graças à ação da causa eficiente, esta ou aquela forma
de uma espécie determinada, que, na língua latina, corresponde ao eidos aristotélico, mas na coisa.
A FORMA COMO PROPORCIONALIDADE INTRÍNSECA
Analisando êste pensamento, podemos dizer o seguinte: esta
coisa é desta espécie porque tem tal forma desta espécie. Portanto, a forma é o
pelo qual esta matéria é isto e não
aquilo. Considerada a matéria, enquanto tal, ela seria indeterminada quanto à
forma adquirida, e esta matéria tornou-se a matéria de, pela funcionalidade da forma. Para grosseiramente exemplificar,
poderíamos dizer que um monte de barro, enquanto barro, não é ainda um vaso,
senão quando recebe a forma do vaso, graças à causa eficiente que o modela. E,
nesse momento, o barro passou a ser um vaso, pela forma que recebeu. A forma não é pròpriamente um o que (quod), que se agregou ao barro.
Apenas êste, como matéria, foi modelado, recebendo uma
proporcionalidade intrínseca, assumido, assim, pela forma de um vaso, sem que
pròpriamente tivesse êle aumentado ou diminuído quanto à sua matéria, mas
apenas recebeu delimitações, determinações, pelas quais deixou de ser apenas um
mero monte de barro para ser um vaso-de-barro.
Neste de-barro,
temos o que Aristóteles chamava a causa material; na forma que recebe de vaso, a causa formal, e na acção do
homem que o modelou, a causa eficiente. A forma, portanto, não tem uma
substancialidade quando tomada isoladamente pelo nosso espírito que a abstraiu,
segundo o ponto de vista aristotélico, como também segundo o tomista, da coisa,
na qual ela estava informada. Conseqüentemente, a expressão de Tomás de Aquino
de que é “através dela” que alguma coisa é, fica, nesta posição filosófica,
perfeitamente esclarecida.
Podemos examinar o pensamento platônico, permanecendo ainda
neste grosseiro exemplo, que, no entanto, permite clarear os horizontes que
delimitam as duas doutrinas. Antes de haver surgido, feito pela mão humana, o
primeiro vaso de barro, a forma vaso
não era um mero nada, porque se o fôsse nunca poderia ter-se tornado existente no barro¹. [¹ Nunca é demais salientar
que não se deve confundir a forma com a figura. No exemplo, sendo o vaso um
ente da cultura, sua forma pode confundir-se com a figura, que é uma
determinação qualitativa da quantidade. Mas um ser da natureza tem uma forma,
por isso, o exemplo é grosseiro, mas serve para esclarecer.]
Mas a forma, tomada em si, não tem materialidade, portanto
não é captável pelos nossos sentidos, não é um fenômeno que surja aos mesmos.
Neste ponto, tanto uns como outros estão plenamente de
acôrdo. Mas o que caracteriza o pensamento platônico está nesta distinção, que
é capital: a forma, se não é do mundo da aparência, é, pelo menos, do mundo da
inteligência, pois pode ser captada intelectivamente, permitindo que, pela
abstracção, realizada pelo nosso intelecto, possa ser tomada à parte. Neste
ponto, ambos estariam de acôrdo. Surge, agora, o momento em que ambas doutrinas
se separam: é que antes dessa informação da matéria, isto é, antes do barro ter
recebido a forma do vaso, esta forma, se não pertence ao mundo da aparência,
não pode, por sua vez, ser reduzida a um puro nada, pois, do contrário, essa
certa quantidade de barro e a forma de vaso ou outra qualquer, seriam
idênticas, o que repugnaria ao nosso espírito.
— Considerando assim, a forma não pode ser classificada como
um puro nada, mas, sim, como alguma coisa, portanto como uma entidade, diversa
da matéria, uma entidade formal no sentido do eidos de Platão, isto é, como um ser de outra ordem, que não a da
materialidade; em suma, um ser imaterial.
Se o barro pode receber a forma de um vaso, fundando-nos na
nossa classificação dos factôres emergentes e predisponentes, temos que
reconhecer que o barro tinha a possibilidade passiva de receber essa forma. E
se levássemos mais longìnquamente o nosso pensamento, poderíamos dizer que o
que constitui o barro, a matéria do qual o barro vem, já continha em si, na sua
emergência, a potência passiva de, por sua vez, receber a forma do barro. E como nessa peregrinação não
poderíamos ir até o infinito, e encontraríamos o ser, temos de admitir que, no
ser, há a aptidão para apresentar-se com tôdas as formas que já surgiram, que
surgem, e que acaso venham a surgir. E essas formas não vêm de modo algum do
nada, por que já estão contidas na aptidão do ser. O que as temporaliza são os
momentos em que elas informam a matéria, mas, enquanto formas, elas são
coeternas com o ser, e subsistem na coeternalidade do ser.
E como não têm elas a menor materialidade, não
têm também uma ubiquação no espaço nem no tempo, e, dêste modo, não se pode pedir
um lugar (pois êsse conceito implica espaço), onde estejam as formas, mas sim
subsistem elas no mundo-verdade, que é o mundo divino do ser. Em linhas
singelas, é êsse o genuíno pensamento platônico. Mas tal pensamento é
decorrente do verdadeiro pensamento pitagórico. É o que vamos mostrar
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O Um e o Múltiplo em Platão, pág. 51-53, 55-58.